A crise veio a calhar
A crise é uma oportunidade, ouvimos dizer constantemente. É verdade. Esta crise tem sido uma oportunidade para implementar uma agenda ideológica que de outro modo não seria possível concretizar. Esta semana isso ficou muito claro.
Após nos ter sido dito, durante meses, que havia um desvio que implicava um esforço colossal, ficámos a conhecer a tradução prática do desejo nunca escondido de ir além da troika. Perante o compromisso de fixar o défice em 5,9% do PIB em 2011, o Governo decidiu apresentar um valor mais baixo, 4,5%. Não só ficámos a saber que este Governo acredita na ideia mágica de ‘austeridade expansionista’ – e que por isso estrangula a economia para lá daquilo a que estamos comprometidos – como tivemos um exemplo prático do que é de facto uma ‘malabarice’.
A transferência do fundo de pensões dos bancários representa um encaixe de 6 mil milhões de euros, o que permite baixar o défice em quase 4 p.p.. Desde logo, esta receita extraordinária sugere que não era preciso ter aplicado um imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal, como o Governo decidiu. A crer na explicação do primeiro-ministro, talvez não seja assim: “se não tivéssemos feito isso nem sequer nos tinham deixado utilizar os fundos de pensões para pagar o défice". Extraordinário. A troika, no fundo, só fechava os olhos a uma ‘malabarice’ contabilística desde que o Governo criasse um novo imposto.
Ainda assim, o problema essencial não é esse. O encaixe que hoje é feito com o fundo de pensões traduz-se num conjunto de responsabilidades futuras e sobre estas pouco se sabe. No passado, a propósito de exercícios do género, o Tribunal de Contas recomendou que “fossem realizados estudos actuariais independentes e isentos de conflitos de interesses, que calculem o valor das responsabilidades transferidas”. Existem estudos sobre esta transferência? Sabemos como é que vão ser pagas as pensões dos bancários no futuro? Ficamos a aguardar a explicação pausada de Vítor Gaspar sobre o que é uma antecipação de receitas extraordinárias. Até lá, o valor final do défice para este ano não passa, mais uma vez, de uma manigância a pagar no futuro.
E oportunidade é mesmo a expressão adequada. No preciso momento em que a segurança social pública contraía mais responsabilidades, o ministro da tutela regressava à velha proposta de limitar o valor das pensões. Estamos face a um eufemismo para se dizer uma outra coisa – queremos diminuir a base contributiva, logo colocar em causa a sustentabilidade financeira do sistema. É uma ideia que pode bem ser classificada como sendo de criança: a menos que se explique como se financiam os custos de transição, não se vê como é que é possível evoluir de um sistema de repartição, em que os descontos de hoje pagam as pensões de hoje, para um que limita os descontos hoje para limitar o valor das pensões amanhã. Talvez aumentando a dívida pública. O mais provável é que tudo não passe de uma oportunidade histórica para se desmantelar o Estado Social.
A crise veio mesmo a calhar.
publicado no Expresso de 16 de Dezembro
Após nos ter sido dito, durante meses, que havia um desvio que implicava um esforço colossal, ficámos a conhecer a tradução prática do desejo nunca escondido de ir além da troika. Perante o compromisso de fixar o défice em 5,9% do PIB em 2011, o Governo decidiu apresentar um valor mais baixo, 4,5%. Não só ficámos a saber que este Governo acredita na ideia mágica de ‘austeridade expansionista’ – e que por isso estrangula a economia para lá daquilo a que estamos comprometidos – como tivemos um exemplo prático do que é de facto uma ‘malabarice’.
A transferência do fundo de pensões dos bancários representa um encaixe de 6 mil milhões de euros, o que permite baixar o défice em quase 4 p.p.. Desde logo, esta receita extraordinária sugere que não era preciso ter aplicado um imposto extraordinário sobre o subsídio de Natal, como o Governo decidiu. A crer na explicação do primeiro-ministro, talvez não seja assim: “se não tivéssemos feito isso nem sequer nos tinham deixado utilizar os fundos de pensões para pagar o défice". Extraordinário. A troika, no fundo, só fechava os olhos a uma ‘malabarice’ contabilística desde que o Governo criasse um novo imposto.
Ainda assim, o problema essencial não é esse. O encaixe que hoje é feito com o fundo de pensões traduz-se num conjunto de responsabilidades futuras e sobre estas pouco se sabe. No passado, a propósito de exercícios do género, o Tribunal de Contas recomendou que “fossem realizados estudos actuariais independentes e isentos de conflitos de interesses, que calculem o valor das responsabilidades transferidas”. Existem estudos sobre esta transferência? Sabemos como é que vão ser pagas as pensões dos bancários no futuro? Ficamos a aguardar a explicação pausada de Vítor Gaspar sobre o que é uma antecipação de receitas extraordinárias. Até lá, o valor final do défice para este ano não passa, mais uma vez, de uma manigância a pagar no futuro.
E oportunidade é mesmo a expressão adequada. No preciso momento em que a segurança social pública contraía mais responsabilidades, o ministro da tutela regressava à velha proposta de limitar o valor das pensões. Estamos face a um eufemismo para se dizer uma outra coisa – queremos diminuir a base contributiva, logo colocar em causa a sustentabilidade financeira do sistema. É uma ideia que pode bem ser classificada como sendo de criança: a menos que se explique como se financiam os custos de transição, não se vê como é que é possível evoluir de um sistema de repartição, em que os descontos de hoje pagam as pensões de hoje, para um que limita os descontos hoje para limitar o valor das pensões amanhã. Talvez aumentando a dívida pública. O mais provável é que tudo não passe de uma oportunidade histórica para se desmantelar o Estado Social.
A crise veio mesmo a calhar.
publicado no Expresso de 16 de Dezembro
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