A tragédia portuguesa
Há uma dificuldade demasiado humana em lidar com a complexidade. A política não é excepção. Aliás, uma parte fundamental da acção política passa por encontrar formulações que simplifiquem o que não conseguimos processar com facilidade. O ano que agora termina foi dominado por dois bordões que cumpriram com eficácia a função a que estavam destinados: “a culpa é do Sócrates” e “vivemos acima das nossas possibilidades”.
Como em muitas outras fórmulas, há um fundo de verdade nestas asserções. Sócrates cometeu erros enquanto primeiro-ministro (à cabeça uma percepção errada da natureza da crise) e a democratização baseada nos padrões de consumo (um dos alicerces perversos da 3ª via e que contagiou o centro-esquerda europeu) teve um efeito devastador sobre as sociedades, nomeadamente aquelas que já eram mais desiguais – as dos ‘países da coesão’, para utilizar a denominação que era dominante e que entretanto foi substituída por uma outra, não por acaso com um sentido pejorativo, ‘periferia’.
Contudo, o essencial dos problemas que enfrentamos não é nem culpa de Sócrates, nem resulta de termos vivido acima das nossas possibilidades. Enquanto o tempo se encarregará de afastar estas explicações, a crise continuará por cá, mostrando a sua natureza persistente e fazendo emergir o emaranhado de causas que a provocou. Para o ano, o Governo já não poderá responsabilizar Sócrates pelo desvio colossal que ocorrerá na receita fiscal (provocado por uma queda do produto superior aos 3% agora estimados) e dificilmente alguém será capaz de, perante um país empobrecido e com desemprego muito elevado, enveredar por um discurso de responsabilização moral, em que se procura culpabilizar os portugueses pela situação em que se encontram. O Governo ficará entregue à sua soberba.
Na tragédia grega, dava-se um nome a esta tentativa arrogante de tudo querer compreender e tudo explicar – a húbris. A tragédia portuguesa é também essa: a dos que vivem a ilusão de que há um só culpado para a crise e que é possível cristalizar as suas causas em dois ou três bordões de belo efeito e com resultados imediatos. Vale a pena recordar que, na tragédia grega, o protagonista era invariavelmente vítima da húbris, da sua inclinação para desprezar a realidade e deixar-se levar pelo excesso de confiança nas suas capacidades. Os deuses castigavam o protagonista com um pathos de sofrimento, numa nêmesis que castigava a insolência, e que tinha como efeito fazer o indivíduo regressar aos limites que transgrediu.
A tragédia portuguesa vai ser mesmo essa: daqui a um ano estaremos bem pior do que hoje e já não teremos à mão as desculpas que hoje são usadas e que têm tanto de fácil como de ilusórias. Talvez então, sejamos capazes de olhar para a nossa ‘tragédia’ em todas as suas matizes. Nessa altura, vamos descobrir que a ilusão da culpa e dos culpados é apenas isso: uma ilusão.
publicado no Expresso de 30 de Dezembro
Como em muitas outras fórmulas, há um fundo de verdade nestas asserções. Sócrates cometeu erros enquanto primeiro-ministro (à cabeça uma percepção errada da natureza da crise) e a democratização baseada nos padrões de consumo (um dos alicerces perversos da 3ª via e que contagiou o centro-esquerda europeu) teve um efeito devastador sobre as sociedades, nomeadamente aquelas que já eram mais desiguais – as dos ‘países da coesão’, para utilizar a denominação que era dominante e que entretanto foi substituída por uma outra, não por acaso com um sentido pejorativo, ‘periferia’.
Contudo, o essencial dos problemas que enfrentamos não é nem culpa de Sócrates, nem resulta de termos vivido acima das nossas possibilidades. Enquanto o tempo se encarregará de afastar estas explicações, a crise continuará por cá, mostrando a sua natureza persistente e fazendo emergir o emaranhado de causas que a provocou. Para o ano, o Governo já não poderá responsabilizar Sócrates pelo desvio colossal que ocorrerá na receita fiscal (provocado por uma queda do produto superior aos 3% agora estimados) e dificilmente alguém será capaz de, perante um país empobrecido e com desemprego muito elevado, enveredar por um discurso de responsabilização moral, em que se procura culpabilizar os portugueses pela situação em que se encontram. O Governo ficará entregue à sua soberba.
Na tragédia grega, dava-se um nome a esta tentativa arrogante de tudo querer compreender e tudo explicar – a húbris. A tragédia portuguesa é também essa: a dos que vivem a ilusão de que há um só culpado para a crise e que é possível cristalizar as suas causas em dois ou três bordões de belo efeito e com resultados imediatos. Vale a pena recordar que, na tragédia grega, o protagonista era invariavelmente vítima da húbris, da sua inclinação para desprezar a realidade e deixar-se levar pelo excesso de confiança nas suas capacidades. Os deuses castigavam o protagonista com um pathos de sofrimento, numa nêmesis que castigava a insolência, e que tinha como efeito fazer o indivíduo regressar aos limites que transgrediu.
A tragédia portuguesa vai ser mesmo essa: daqui a um ano estaremos bem pior do que hoje e já não teremos à mão as desculpas que hoje são usadas e que têm tanto de fácil como de ilusórias. Talvez então, sejamos capazes de olhar para a nossa ‘tragédia’ em todas as suas matizes. Nessa altura, vamos descobrir que a ilusão da culpa e dos culpados é apenas isso: uma ilusão.
publicado no Expresso de 30 de Dezembro
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