quarta-feira, janeiro 25, 2012

O capitalismo no Estado

Passos Coelho afirmou que a privatização da EDP não tinha assentado em “nenhuma consideração de carácter geopolítico”. Muito provavelmente estava a falar verdade. A questão é bem mais grave.
Esta semana ficámos a saber que a venda do que ainda era público da EDP ao Estado chinês (é disso que se trata) terá consequências para a nossa economia política. A plêiade de nomes escolhida para o conselho geral e de supervisão da empresa só é compreensível por uma vontade de emular o modelo de capitalismo de Estado chinês. Uma tendência que, aliás, tem o condão de reforçar o pior da história do capitalismo português ao longo de todo o século XX: a iniciativa privada com escassa autonomia e grande dependência do Estado e cuja influência depende de uma troca de favores entre poder político e económico. Aqueles nomes foram escolhidos para agradar ao Governo, ao qual se retribuem favores passados e do qual se esperam gratificações futuras. Nada de novo, aparentemente.
Claro que continua a ser penoso presenciar o modo como Passos Coelho descarta uma a uma todas as promessas de campanha ou, ainda, assistir ao degradante espectáculo dado por Eduardo Catroga – que nunca se inibiu de pedir sacrifícios e criminalizações da actividade política, mas que agora não se coíbe de justificar os seus magros 639 mil euros anuais com o singelo argumento de que “quanto mais ganhar, maior é a receita do Estado com o pagamento dos meus impostos, e isso tem um efeito redistributivo para as políticas sociais”. Imaginemos que todos os portugueses invocavam este princípio para exigir aumentos salariais.
Contudo, nenhuma destas dimensões é tão grave como a sensação de que, mesmo quando vendemos os dedos e os anéis, alienando o que resta da nossa soberania, há uma dimensão estrutural que persiste e sai reforçada: o Estado bem pode sair das empresas, mas as empresas não saem do Estado.
Para quem falou em “democratização da economia” ou andou a proclamar um liberalismo de pacotilha, apreendido em três lições apressadas na contracapa de meia dúzia de livros, o caminho seguido, ainda assim, surpreende. O que Portugal está a fazer é contribuir, de modo não negligenciável, para a entrada e afirmação na Europa, num sector estratégico como o das energias, de um modelo de capitalismo que não tem nenhuma preocupação com a concorrência, que desrespeita as mais elementares regras de mercado e é socialmente insustentável. As grandes empresas chinesas são braços armados da afirmação geopolítica do Estado chinês e visam, através da expansão, garantir o crescimento e a estabilidade social, de modo a reproduzir um sistema político deplorável.
No fundo, a China sabe que pode contar com Portugal: um país em dificuldades financeiras, e por isso exposto e permeável, e que tem um lastro de promiscuidade entre poder político e económico que gera um terreno fértil ao desenvolvimento do capitalismo assente no Estado. Para liberalismo e “democratização da economia”, estamos conversados.

publicado no Expresso de 14 de Janeiro