quinta-feira, outubro 25, 2012

Um exercício alucinado


Este orçamento tem sido criticado por ultrapassar “os sacrifícios pedidos aos portugueses” e comparado fiscalmente com um ataque de “napalm”. Nenhum destes problemas é a principal fragilidade do O.E.. A questão central é outra: mesmo se nos colocarmos na posição das sete pessoas (espero não me estar a esquecer de ninguém) que defendem a bondade desta estratégia, não se percebe como é que este orçamento pode ser cumprido.
No essencial, um orçamento é uma previsão da receita e da despesa que reflete um conjunto de opções políticas. Ora há, desde logo, um problema sério com o cenário de partida. O ministro das Finanças, das poucas vezes que é convidado a responder à questão, insiste que o défice real em 2012 será de 6%. Resta saber como será o comportamento deste último trimestre, nomeadamente tendo em conta o efeito depressivo produzido pela sucessão de declarações políticas, iniciada com o anúncio das alterações na TSU. O mais provável é estarmos a assistir a um quadro de colapso da receita fiscal, numa espécie de versão extrema do que se passou em 2009, com Teixeira dos Santos como ministro.
As consequências são claras: o incumprimento de 2012 projetar-se-á em 2013. Não por acaso, perante um compromisso de reduzir o défice em meio ponto percentual, o Governo anuncia um esforço de austeridade superior a 3% do PIB. Uma parte deste esforço é para compensar o fracasso de 2012, que o Ministro Gaspar parece sentir-se no direito de não justificar. Mas não explica tudo.
O mais grave é o que se anuncia para 2013. Mais uma vez, o Governo elabora um orçamento que assenta num cenário macroeconómico fantasioso, em valores para o desemprego subestimados e numa expectativa para a receita inflacionada. A fórmula vai falhar e não estamos perante uma repetição do otimismo irrealista que caracterizou a política orçamental do passado recente, já entrámos no domínio da relação alucinada com a realidade.
Ninguém no seu perfeito juízo pode acreditar que uma austeridade sem paralelo provocará uma recessão de 1% do PIB e trará apenas mais 80 mil desempregados. Aliás, basta utilizar a nova versão dos multiplicadores orçamentais do FMI para se perceber que o impacto negativo na economia variará entre os 3 e os 5%, produzindo um efeito devastador no mercado de trabalho.
O Ministro Vítor Gaspar falou esta semana num “conjunto de incertezas” que ameaça a execução orçamental. Infelizmente estamos perante um conjunto de certezas: o orçamento não tem credibilidade, tem uma componente de alucinação, é incumprível e empurrará o país para uma espiral recessiva.
Se é assim, e a menos que a insanidade tenha tomado conta do Conselho de Ministros (hipótese que não deve ser descartada à partida), esta “estratégia” serve exatamente para quê? Para ganhar tempo? Talvez não fosse despiciendo que alguém no Governo ensaiasse uma resposta à questão. Se tal não for feito, o Governo, que agora se encontra moribundo, cairá às mãos do boletim de execução orçamental do 1º trimestre.
publicado no Expresso de 20 de Outubro 

quinta-feira, outubro 18, 2012

A terapia das cabeçadas na parede


Imagine que tem uma enxaqueca bastante intensa, consulta um economista e este dá-lhe uma conselho: “bata com a cabeça na parede”. Obedientemente, dirige-se a um muro que encontra ao virar da esquina e é isso que faz. Não apenas vai sentir dores como a enxaqueca tenderá a intensificar-se. Ainda assim, porque confia no seu conselheiro, regressa para mais uma consulta. O economista amigo, depois de olhar para uma folha de excel, conclui que o problema é seu – não bateu com a cabeça com a intensidade adequada (ou seja, colocou pouco empenho na terapia) – e aconselha-o a insistir no tratamento, mas desta feita com mais vigor: tem de bater com a cabeça na parede com toda a força que for capaz. Chegados aqui, talvez convenha não ser economista para antecipar os resultados. Começará a sangrar da testa, a enxaqueca tornar-se-á insuportável e, caso tenha sido cumpridor, até o muro pode ter ficado ligeiramente danificado. É assim que o economista Bill Mitchell, no seu blog, resume as intervenções seguidas pelo FMI nos últimos anos. Hoje, já não é preciso ser grego para se estar familiarizado com a terapia das “cabeçadas na parede”.
Esta semana, contudo, o economista que o aconselhou (no caso, o FMI), assim como quem não quer a coisa, veio reconhecer que a terapia tinha um pequeno problema. Como o paciente já havia intuído, os pressupostos em que se baseava afinal estavam errados. Senão, vejamos. A crer no método, por cada euro poupado com o ajustamento orçamental, o efeito recessivo no PIB deveria ser de meio euro. No fundo, por cada vez que batia na parede (uma unidade em cabeçadas), a sua dor aumentaria em meia unidade em cabeçadas.
O que nos dizem agora os economistas do FMI? Em primeiro lugar que subestimaram os efeitos multiplicadores orçamentais de curto prazo (a enxaqueca vai ficar a pairar durante mais tempo) e que o efeito recessivo é bem maior do que o esperado, o PIB variará entre 0,9 a 1,7 euros (em lugar do meio euro avançado). Afinal, por cada cabeçada dada a sua dor intensificar-se-á.
            Estamos perante o reconhecimento de que o método das cabeçadas na parede não funciona para resolver enxaquecas, ou seja, que há um problema de raiz com os programas de ajustamento. Não fiquemos, contudo, muito otimistas em relação a possíveis mudanças de estratégia. Há um par de anos, o próprio “departamento independente de avaliação” do FMI já havia reconhecido que a organização tinha um sério problema de “group thinking” – ninguém questionava as virtudes das “cabeçadas na parede” e os ajustamentos eram construídos a partir desse pressuposto – e não decorreu daí nenhuma consequência.
            Agora, quando as contas do próprio FMI expõem o erro brutal que são estes programas de ajustamento, temos de nos colocar uma questão: vamos continuar a bater com a cabeça na parede, seguindo as sábias instruções da troika e dos seus acólitos nacionais (os Gaspares, os Moedas e os Borges, para nomear apenas alguns), ou, para tratarmos a nossa enorme enxaqueca, vamos ajudar quem nos aconselha a desenvolver uma terapia que faça sentido e seja eficaz?
Publicado no Expresso de 13 de Outubro

Memória do Futuro


Memória do Futuro
O historiador Anthony D. Smith escreveu que “sem memória não há identidade; sem identidade, não há nação”. Vale a pena refletir sobre a asserção, num dia em que se celebra pela última vez o feriado do 5 de Outubro, data da implantação da República, e quando, daqui a um par de meses, também o 1º de Dezembro, dia da nossa independência, deixará de ser feriado nacional.
Como acontece com todas as formas de identificação (à cabeça a família, mas, também, a religião), a pertença a uma nação implica a partilha de referências a um passado comum, através do qual se constrói uma identidade. A memória colectiva é o cimento da vida em comunidade e, numa era em que tudo se dispersa e parece ruir, a nação é ainda um lugar privilegiado de identificação. Um porto de abrigo, mas, também, de partida.
Há, contudo, em torno da comemoração das efemérides políticas um discurso recorrente, que sugere que são resquícios de um passado distante, que pouco diz aos portugueses de hoje. Nada de mais errado. Mesmo que a componente popular dos festejos se vá diluindo – o que é natural –, essa não é razão para suprimir a celebração institucional do que é a memória territorializada de uma ‘comunidade imaginada’, na feliz expressão de Benedict Anderson. Uma nação, convém recordar, não só não existe ‘em si’, como é socialmente construída e alicerça-se não num conjunto de relações individuais, mas numa meta-memória, assente em afinidades políticas que não podem deixar de ser invocadas – sob pena de se extinguirem, arrastando com elas a própria comunidade política.  
Ao suprimir os feriados do 5 de Outubro e do 1º de Dezembro, o Governo revela um misto de leviandade e irresponsabilidade, sugerindo, uma vez mais, que está convicto de que tudo é reconstruível a partir da vontade política do momento, num experimentalismo que só pode correr mal. Mal ou bem, hoje com uma distância simbólica crescente, os feriados que celebram o regime e a independência são uma forma de sincronizar o nosso passado colectivo com o presente, construindo uma memória coletiva, que é um requisito para existirmos como nação no futuro.
Convém, contudo, não desvalorizar que o fim da celebração da República tem também um efeito de ocultação do que é, ou deveria ser, o chão comum em que assenta o nosso regime e a nossa comunidade. A República, por um lado, como representação pluralista e livre dos cidadãos, e quadro institucional no qual se constrói a nação; por outro, como regime onde prevalece o primado da política como resposta à questão económica e social e não o contrário.
Esta crise tem sido, de facto, uma oportunidade para brincar com o fogo, e como descobriremos, infelizmente, à degradação económica e social seguir-se-á a decadência política e institucional, num contexto em que os laços que nos uniram foram sendo paulatinamente destruídos. Se não nos celebramos como comunidade política independente, corremos o risco de o deixar de ser.
            Publicado no Expresso de 5 de Outubro

segunda-feira, outubro 08, 2012

Um ar irrespirável


Há duas semanas, o país saiu à rua para se manifestar. Da esquerda à direita, ouviram-se vozes críticas das políticas do Governo. Mesmo o CDS, que faz parte da coligação, não hesitou em tornar público o seu desconforto com o confisco fiscal e com a aberração económica e social que eram as alterações à TSU. Não tenho dúvidas em reconhecer a ameaça que as medidas anunciadas representam e a recomposição dos equilíbrios de poder na sociedade portuguesa que lhes está implícita. Mas, se é possível estabelecer uma escala de gravidade nas opções políticas, devo dizer que as declarações da ministra da Justiça esta semana são ainda mais assustadoras.
            Uma coisa é um Governo afirmar uma visão distinta, mas politicamente legítima, sobre o que deve ser a organização da nossa economia política, outra, bem diferente, é colocar em causa o consenso civilizacional em que assenta a nossa democracia e, acrescento, qualquer sociedade decente. É essa a consequência das afirmações da ministra da Justiça quando, no mesmo dia em que três ex-governantes eram alvo de buscas domiciliárias, com a prisão de Caxias como pano de fundo, garantiu que “acabou o tempo da impunidade”.
Deixemos de lado o cinismo em todo o seu esplendor da afirmação de que as suas declarações não se reportavam a nenhum caso concreto ou o silêncio cúmplice com o facto intolerável de, entre nós, as buscas serem impunemente publicitadas, tornando indivíduos inocentes em condenados ambulantes, sem possibilidade de defesa. Concentremo-nos no “fim da impunidade”.
Não sei nada sobre os factos que estão na base desta investigação e, naturalmente, não ponho as mãos no fogo por ninguém. Mas sei que, em Portugal, está criado um caldo cultural e montado um circo justicialista propícios ao germinar de monstruosidades e de condenações sumárias na praça pública. O que se espera de um membro de um Governo numa democracia é que pedagogicamente contrarie a tendência, o que nos é oferecido pela ministra da Justiça é um reforço deste quadro sombrio.
Um titular do cargo de ministro da Justiça zela pela garantia de coisas elementares num Estado de direito, à cabeça de todas, a presunção de inocência, e não pode nunca pactuar com condenações baseadas em percepções públicas sobre corrupção, alimentadas por uma comunicação social que cavalga a insatisfação social. Quando tudo parece ruir, a última coisa de que precisávamos era de políticos que buscam a sua salvação pessoal na exploração dos sentimentos mais negativos sobre a classe a que pertencem, ultrapassando levianamente a fronteira que separa a barbárie da civilização e do Estado de direito. Até prova em contrário, os políticos são todos corruptos, é-nos sugerido diariamente; no fundo, Paula Teixeira da Cruz, ao afirmar que acabou o tempo da impunidade (para bom entendedor, o tempo em que a corrupção não era punida), vem confirmá-lo.
publicado no Expresso de 29 de Setembro 

terça-feira, outubro 02, 2012

O poder na rua


A política está cheia de ideias que tendo um fascínio inicial acabam por ter custos enormes no médio prazo. A banalização simbólica do lugar de primeiro-ministro é uma delas. À primeira vista, termos um primeiro-ministro que passa férias numa praia popular, como se permanecesse um português comum, ou que tem uma página no Facebook, onde continua a ser o Pedro, pai e amigo, sugere uma dessacralização do poder, aproximando quem governa de quem é governado. Numa altura em que os políticos são vistos como gente não frequentável e o exercício do poder é olhado com desconfiança e percepcionado, no essencial, como uma oportunidade para se tratar da própria vida e da dos próximos, a ideia parece ter potencial.
Passos Coelho resolveu explorá-la, com a atitude temerária e pouca reflectida que caracteriza todas as suas opções. Como se sabe, a audácia anda frequentemente de braço dado com a insensatez. Numa altura em que a situação económica das famílias portuguesas se agudizava, o primeiro-ministro não hesitou em encenar umas idas à praia, devidamente televisionadas, no meio dos portugueses comuns; no dia em que anunciou as medidas mais brutais que conhecemos nas últimas décadas, achou por bem ir distender cantarolando temas populares; no dia seguinte, suspendeu o seu mandato para se justificar, enquanto Pedro, no Facebook. Ora o que é que é que aconteceu perante esta estratégia de dessacralização do poder?   
O primeiro-ministro estabeleceu uma relação com os portugueses sem distância e onde os mecanismos de mediação no exercício do poder foram aliviados. Não se deu ao respeito e, à primeira oportunidade, os portugueses responderam-lhe no mesmo tom. Procurou fazer assentar a sua legitimidade numa popularidade assente na rua, numa relação “tu cá, tu lá” com os portugueses, apresentando-se como o homem banal que nunca pode ser enquanto é primeiro-ministro e o país respondeu-lhe na mesma moeda. Perante um justificado descontentamento, os portugueses saíram em massa à rua, ao mesmo tempo que perdiam o respeito de forma irreversível ao chefe do Governo. Pelo caminho, acentuou-se a degradação institucional, que segue a um ritmo imparável.
Chegados a este ponto, quando a situação económica se deteriora e o Governo está preso nas armadilhas que colocou a si mesmo (à cabeça, a ideia peregrina de “ir além da Troika”), todos os cenários apontam para o fim político da coligação Passos/Portas: se o Governo inverter a trajetória, empurrado pela pressão da rua, são dados incentivos objectivos para que a contestação social cresça; se tudo continuar na mesma, o descontentamento continuará a crescer.
É-nos dito, com razão, que a democracia radica numa legitimidade formal e não pode cair na rua. O drama é precisamente esse: o primeiro-ministro foi à procura da rua e, no Sábado passado, esta regressou a galope. Agora, já nada há a fazer. É apenas uma questão de tempo. No fundo, “a rua” sabe que este governo acabou, só não sabe quando é que vai ser removido.

publicado no Expresso de 22 de Setembro