sábado, agosto 28, 2010

OS suspeitos do costume

A história contemporânea ensina-nos que as crises económicas são inimigas da democracia. E a crise que as democracias ocidentais estão a atravessar é a maior das últimas décadas. É evidente que o contexto actual tem diferenças significativas relativamente ao período que levou à II Guerra Mundial. Mas há coisas que, infelizmente, não mudam. Estes períodos são sempre perigosos para os mais fracos, os imigrantes e os mais pobres dos pobres. Quando um chefe de Estado ou de governo está em dificuldades por causa dos efeitos das medidas de austeridade, nada melhor do que a exploração de preconceitos através de uma expulsão de ciganos devidamente mediatizada, como fez Sarkozy. Por cá, em matéria de imigração, há ainda um consenso importante entre PS e PSD. Mas quando a situação se complica, aperta-se o cerco aos "malandros dos beneficiários do rendimento mínimo" e faz-se disso bandeira da contenção da despesa. É, de facto, o caminho mais fácil. Afinal, muita gente ganha pouco mais do que eles e tem de trabalhar. Essas pessoas e sentimentos existem. Só falta que lhes digam que o problema talvez esteja mais na política de rendimentos e na política fiscal do que naqueles que tiveram o azar de passar nos apertados critérios de acesso às prestações.
publicado hoje no i.

sexta-feira, agosto 27, 2010

Más notícias para a esquerda

Num mundo em permanente mudança, há uma instituição que nunca nos surpreende: o Partido Comunista Português. Depois de muito se falar de Carvalho da Silva, Ilda Figueiredo ou Bernardino Soares, o Comité Central do PCP decidiu aprovar, "por unanimidade e aclamação", o nome do "camarada Chico Lopes" como candidato à Presidência da República. Francisco Lopes não é um parlamentar conhecido nem uma figura mediática. É muito mais relevante do que isso. Trata-se de um dos três membros do Secretariado da Comissão Política, uma espécie de "politburo" do PCP. Esta escolha representa, a curto e a médio prazo, más notícias para a esquerda. É certo que Jerónimo lembrou que o candidato da direita é o principal adversário. E que Alegre se apressou a saudar a decisão da Soeiro Pereira Gomes, confiando no Partido Comunista para mobilizar os seus próprios eleitores. Mas é evidente que o principal adversário do PCP nestas eleições (como noutras) é o Bloco de Esquerda. O PCP não deixará de querer recuperar a hegemonia do espaço à esquerda do PS, e para isso o seu candidato precisará de atacar o governo e o seu candidato presidencial. Como se viu em 2006, o resultado da divisão à esquerda não é a mobilização para a segunda volta mas a desmobilização logo à primeira.
A médio prazo as perspectivas também não são animadoras. Se tivermos em conta que Carvalhas, primeiro, e Jerónimo, depois, passaram pelas campanhas presidenciais, tudo indica que estamos perante uma etapa essencial do cursus honorum dos secretários-gerais do PCP. Depois de Jerónimo não virá mais renovação e abertura. Virá Francisco Lopes.
publicado hoje no i.

terça-feira, agosto 24, 2010

A força da realidade

José Sócrates aproveitou uma iniciativa do PS para responder ao discurso de Passos Coelho no Pontal. E o que “passou” foi isso mesmo: a resposta à revisão constitucional “neoliberal” do PSD e à recente disponibilidade do principal partido da oposição para abrir uma crise política.

Na aparência, os últimos tempos têm corrido bem a Sócrates. No caso da ‘golden share', Passos Coelho surgiu como antipatriótico; no projecto de revisão constitucional, apareceu como alguém que quer privatizar serviços públicos e facilitar despedimentos; finalmente, no Pontal, o líder do principal partido da oposição perdeu a imagem de responsabilidade manifestada no PEC II e admitiu chumbar o Orçamento e abrir uma crise política. O estado de graça de Passos é passado, sem dúvida. E realmente não se percebe o que levou o líder do PSD, que até estava a beneficiar da imagem de responsabilidade deixada na aprovação dos objectivos do PEC, a inventar sucessivas e desastrosas manobras de demarcação política.

As coisas têm-se passado de tal modo que já se começa instalar a ideia de que talvez ainda esteja para nascer o líder do PSD que vai derrotar José Sócrates. Confesso que acho algo ilusório este optimismo. Na verdade, as últimas sondagens continuam a dar vantagem ao PSD - à semelhança do que sucede em praticamente todos os países, onde os Governos têm sido muito penalizados pela crise.

No final, a revisão constitucional de Passos Coelho pesará sempre muito menos do que os números do desemprego. Com o desemprego nos 10% de pouco servirá acenar com o papão neo-liberal. A realidade tem sempre mais força do que as proclamações programáticas.

Mas, para além destes indicadores económicos e sociais que não costumam dar muita saúde política aos governos, provavelmente o maior sinal de alerta para o PS é a incapacidade que revela em marcar a agenda política. No discurso de Mangualde, Sócrates esforçou-se por lembrar a agenda do Governo. Infelizmente, e como já vem sendo hábito, dessa agenda pouco ficou na memória - e isto diz muito da capacidade de mobilização e liderança de que o Executivo goza nesta fase. Longe vão os tempos em que se discutia as políticas de educação de Maria de Lurdes Rodrigues, a reforma da segurança social de Vieira da Silva e as mudanças na saúde de Correia de Campos. E, nesta fase, era mais de iniciativas políticas do que de crises políticas que o país precisava.

Ao fim de perto de seis anos, termina aqui a minha colaboração com o Económico. Agradeço, primeiro, ao Martim Avillez, depois ao António Costa, o convite para escrever e, acima de tudo, a liberdade absoluta de que sempre gozei nestas páginas. O Ricardo da Costa Nunes e a Madalena Leal foram, ao longo destes anos, interlocutores atentos. Quem lê os jornais muitas das vezes desconhece os nomes daqueles que, na sombra, os fazem quotidianamente. Agradeço aos leitores as reacções que me foram enviando ao longo dos tempos. A partir de agora, manter-me-ei um fiel leitor do Económico.

publicado no Diário Económico.

sábado, agosto 21, 2010

Uma presidência falhada?

-não foi certamente este o final de mandato com que Cavaco Silva sonhou. Quando regressar de férias encontrará a justiça numa situação insustentável, para utilizar uma expressão que lhe é cara. E convém lembrar que o Presidente é o supremo magistrado da nação, a quem compete nomear, por exemplo, o procurador-geral da República. O desemprego, por outro lado, mantém-se elevado e o abrandamento do ritmo de crescimento económico já reflecte os efeitos das medidas de austeridade. Ora este presidente candidatou-se com base nas suas credenciais de economista e prometeu uma concertação estratégica com o governo. Como se não bastasse, apesar de oriundo do centro-direita, Cavaco não parece ter neste momento qualquer influência nas direcções do PSD e do CDS, que já falam abertamente de eleições antecipadas e preferiam outro candidato. Entretanto, há dúvidas sobre se a incerteza quanto à viabilização do próximo Orçamento de Estado desagrada mais a Cavaco ou aos mercados. O Presidente tem portanto dois meses para mostrar o que vale. E não pode dizer que não tem competências em matéria de justiça ou política económica e parlamentar. Mesmo que seja em parte verdade, ao reconhecê-lo estaria a diminuir o cargo em véspera de eleições. Cavaco vai ter de assegurar alguma ordem no sector da justiça. Vai ter de garantir que o Orçamento passa com uma maioria PS e PSD, numa linha contraditória com a do seu principal adversário. E vai ter de evitar que às dificuldades económicas se junte uma crise política. O caos na justiça, a instabilidade orçamental e uma crise política seriam as marcas de uma presidência falhada.
publicado hoje no i.

sexta-feira, agosto 20, 2010

O regresso do Pontal

Mendes Bota acha que Passos Coelho está numa posição privilegiada para “perceber o povo”, afinal “vive em Massamá» e não num “condomínio fechado”. A frase não deve ser vista como um dislate do dirigente do PSD no Pontal. Foi resultado da esperteza saloia que já se anunciava na última edição do Expresso: “da estratégia do PSD faz parte mostrar o novo líder como o português comum que passa férias na recatada vila de Manta Rota, por contraste com o primeiro-ministro no luxo do Pine Cliffs”. Sabemos que a anterior tentativa de demarcação com o PS - a revisão constitucional - não correu nada bem ao PSD. Passos deixou-se associar à privatização dos serviços públicos e à flexibilização dos despedimentos, e os efeitos tornaram-se visíveis nas sondagens. Para virar a página e voltar a sintonizar o líder com a classe média, não ocorreu aos estrategas do PSD nada melhor do que um contraste com as férias de Sócrates. Mas este regresso do PSD ao Pontal foi um regresso fora de tempo ao pior do cavaquismo, quando o homem do leme exibia a sua vivenda e justificava a ausência de currículo antifascista com o facto de não ter nascido em berço de ouro. Com um Governo sem rumo, uma situação económica e social dramática e sem que se perceba como é que vamos ter orçamento para 2011, não deixa de ser significativo que o que o PSD tenha para oferecer seja uma ameaça de crise política combinada com uma discussão sobre as férias do primeiro-ministro e a freguesia onde vive o líder da oposição. É bem o espelho do pântano para onde estamos a caminhar. Quando a classe política der por isso, já os portugueses tiraram definitivamente férias da política. Em Massamá, no Pine Cliffs ou em Manta Rota. Pouco importa.
publicado hoje no i.

sábado, agosto 14, 2010

Uma estratégia possível

As últimas sondagens dão a Cavaco Silva uma vantagem suficiente para ganhar à primeira volta. A candidatura de Manuel Alegre tem um problema sério e o estado de espírito na esquerda resume-se a esperar para ver. Alegre tem de fazer qualquer coisa para inverter esta tendência: o pior que lhe podia acontecer era ficar numa espécie de meio caminho que, sem desagradar nem ao PS nem ao BE, acabará por não mobilizar ninguém. Não por acaso, o seu melhor momento até agora esteve na tentativa de associar Cavaco, o economista empenhado na cooperação estratégica, à situação económica do país. Anteontem, ao reler para o i o "III Fares the Land" de Tony Judt, lembrei-me da candidatura de Alegre. O livro anuncia uma estratégia eleitoral possível. Manuel Alegre representa a mesma social- -democracia de Judt, demasiado presa ao modelo social vigente nos 30 gloriosos anos do pós- -guerra, que, além do mais e infelizmente, nunca passaram por Portugal. Uma estratégia que, como programa de governo, não serve, desde logo porque abdica de qualquer visão modernizadora. Mas, tratando--se de eleições presidenciais, talvez esta retórica nostálgica não seja vista como uma ameaça excessiva pelo que resta da esquerda moderna de Sócrates. Num momento em que as pessoas olham para o futuro com desconfiança e vêem o seu estilo de vida ameaçado - a "era de insegurança" de que fala Judt -, uma plataforma política conservadora e de resistência às transformações e aos ajustamentos será pouco realista e inconsequente mas poderá, apesar de tudo, ter alguma força eleitoral, permitindo descolar dos actuais 20%.
publicado hoje no i.

sexta-feira, agosto 13, 2010

Um legado com futuro?

Morreu no fim-de-semana o notável historiador Tony Judt (são imperdíveis as suas crónicas autobiográficas que o New York Review of Books disponibiliza online). Consciente da sua curta esperança de vida, quis deixar "Ill Fares the Land" como testemunho social-democrata. O principal problema do livro reside aqui. A social-democracia que Judt defende nada tem a ver, por exemplo, com a de Donald Sassoon, que nos mostra um movimento marcado por sucessivos processos de modernização e que sempre soube distinguir os valores dos instrumentos que ao longo do tempo os concretizam. A social-democracia de Judt é rígida e parece ter atingido um estado de perfeição nos 30 anos do pós-guerra que deve ser defendido a todo o custo: "Abandonar os esforços de um século é trair aqueles que nos antecederam bem como os que estão por vir." O Estado Providência está hoje confrontado com conhecidos desafios estruturais, de natureza económica e demográfica. Para Judt, é como se tudo se resumisse a uma questão de discurso, a um problema que pode ser ultrapassado num plano estritamente ideológico. Infelizmente, para a sustentabilidade do Estado Providência, tão perigosas como as receitas neoliberais são as posições imobilistas. "Ill Fares the Land", um testemunho pensado para os jovens, bem podia ser um manifesto eleitoral de sucesso para os mais velhos. Tocqueville, que Judt lembra numa das muitas (e boas) epígrafes, parece mais actual do que nunca: "Não posso deixar de temer que as pessoas cheguem a um ponto em que vêem qualquer nova teoria como um perigo, qualquer inovação como um problema [...] e que possam recusar qualquer movimento."
publicado hoje no i.

terça-feira, agosto 10, 2010

O legado bolchevique

Morreu este fim-de-semana, aos 95 anos, Dias Lourenço, um dos últimos membros do núcleo duro que acompanhou Álvaro Cunhal nos “sete fôlegos” de que fala Carlos Brito nas suas recentes memórias (“Álvaro Cunhal, Os Sete Fôlegos de um Combatente”, Edições Nelson de Matos).

Dias Lourenço definia-se, com orgulho, como "um velho bolchevique". Pertenceu a uma geração de comunistas que conduziu a chamada reorganização do Partido, resistindo com coragem cívica e física à ditadura. A história da sua fuga de Peniche é, sem dúvida, épica. Depois do 25 de Abril e do PREC, este grupo soube responder de forma positiva ao desafio que Melo Antunes lhes lançou: a integração dos comunistas e das forças revolucionárias no sistema democrático.

Não conseguiram, no entanto, reagir com lucidez à implosão da URSS, por onde quase todos haviam estado nalgum momento da sua vida. A partir da década de 90, com o passar do tempo e após derrotas eleitorais sucessivas, esta geração deu lugar a outra que parecia preparada para conduzir a renovação necessária: Luís Sá, João Amaral, Edgar Correia, entre outros. Foi o tempo do "Novo Impulso", a última vez em que o PCP procurou seguir uma estratégia de alargamento do seu espaço cultural e eleitoral. Ao contrário do que a ortodoxia comunista e o comentário conservador querem fazer crer, não foi nos tempos de cristalização ideológica que o PCP cresceu. Nem está escrito em lado nenhum que só a reafirmação anacrónica do marxismo-leninismo é o antídoto para o definhamento dos partidos comunistas. Como lembra Carlos Brito, nas referidas memórias, foi a seguir à Perestroika e ao inacreditável apoio do PC aos golpistas de 1991 que a quebra eleitoral mais se acentuou. Com este posicionamento político, a fuga de quadros foi grande e a influência cultural de que o PC ainda beneficiava foi desaparecendo. Pelo contrário, em 1999, no auge do movimento do "Novo Impulso", que contou com o apoio inicial de Carlos Carvalhas, o PCP até teve um bom resultado.

O regresso à linha ortodoxa, representada por Jerónimo de Sousa e preparada na sombra pelos velhos (e novos) bolcheviques, só tem servido para resistir, tirando ao PCP qualquer hipótese de crescimento, mesmo em anos de governação socialista. Quem tem aproveitado é o Bloco de Esquerda. Ao contrário do que sugeria Carvalho da Silva numa entrevista ao Sol, não é tanto a falta de um PS social-democrata que tem impedido o diálogo entre a esquerda portuguesa. Como bem sabe o líder da CGTP, é justamente neste regresso do PCP à ortodoxia e na sua competição fratricida com o BE que tem residido o principal bloqueio do sistema partidário português.

publicado no Diário Económico.

sábado, agosto 07, 2010

Tudo por explicar

Esta semana entrou no Tejo o Tridente. O ministro e o chefe da Armada estavam de férias. A chegada foi discreta, como não podia deixar de ser: os submarinos queimam. O que só serve para demonstrar como neste processo nada correu bem. Em primeiro lugar, a oportunidade. Afinal, são mil milhões a entrar nos défices dos próximos dois anos. Nada de especial, por exemplo, para o almirante Vieira Matias, que veio lamentar que não tenham vindo quatro submarinos. Mas as dúvidas adensam-se também em relação ao processo administrativo: a escolha do consórcio; as regras que se alteraram a meio do jogo; a fraca execução das contrapartidas; a posição de fragilidade em que o Estado se pôs; o enigmático papel dos consultores. Nada é claro. Esta intriga tem, no entanto, deixado para segundo plano a discussão de uma questão não menos relevante: a de saber se Portugal necessitava de renovar, com esta urgência e nível de investimento, a sua capacidade submarina. Na devida altura, Ana Gomes revelou publicamente a existência de documentos da NATO que punham fortes reservas sobre a utilidade desta aquisição. Que "interesse nacional" é esse que se manifesta em contradição com o quadro de alianças em que Portugal se insere? Argumenta-se com a utilidade submarina na "vigilância costeira". Mas não haverá outros navios mais vocacionados para essas missões? Recentemente também surgiram notícias dando conta da redução das frotas submarinas em países da UE e da NATO. Neste caso, como infelizmente noutras aquisições militares, está ainda tudo por explicar.
publicado no i.

sexta-feira, agosto 06, 2010

Um país, três rainhas

A revisão constitucional e a campanha presidencial já têm assunto: a organização do Ministério Público. Pinto Monteiro foi certeiro. É preciso que o poder político decida se quer um MP autónomo mas hierarquizado ou se prefere o "actual simulacro de hierarquia, em que o PGR tem os poderes da rainha de Inglaterra".
Na verdade, para além do procurador, há mais duas rainhas de Inglaterra no sistema: o Presidente da República, supremo magistrado da nação, a quem compete nomear o PGR, e o próprio ministro da Justiça, que não pode ser responsabilizado pelos resultados de um sistema que, aos olhos dos cidadãos, tutela.
O que vigora é aquilo a que, há um par de anos, o próprio PGR apelidou de sistema de "duques, marquesas e valetes". A face mais visível deste poder feudal é o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que anteontem nos brindou com mais um comunicado que só veio dar razão àqueles que, como Jorge Miranda, defendem a proibição constitucional de os magistrados se organizarem em sindicatos.
Era bom que os principais partidos trocassem, de boa fé, umas ideias sobre este assunto. Para já, o PS podia ter ido mais longe na defesa do reforço da hierarquia no MP, em vez de deixar o PGR isolado. O PCP, já sabemos, não conta para este debate. Mas o PSD há muito devia ter percebido que este estado de coisas só serve para descredibilizar o sistema político no seu todo. Como escreveu esta semana Ferreira Fernandes, a propósito das perguntas que os procuradores não conseguiram fazer a Sócrates, "a minha questão é: e amanhã? Passos ou Ângelo, Jerónimo, Portas ou Louçã, todos terão direito a perguntas que não lhes serão feitas".
publicado hoje no i.