terça-feira, março 25, 2008

Começar de novo

O atoleiro político em que se tornou o Iraque, bem como a dimensão da crise bolsista, classificada pelo (in)suspeito Alan Greenspan como a pior dos últimos cinquenta anos, têm sido frequentemente lidos como paradigma do desastre que foram os anos de George W. Bush como presidente. Ainda que não se deva desvalorizar a capacidade de um homem só para causar tamanhos danos, também convém não sobrevalorizar o papel historicamente negativo de Bush filho.

Na verdade, a administração Bush é o canto do cisne de um longo movimento conservador que rompeu com o consenso promovido pelo republicano Eisenhower em torno do New Deal de F.D. Roosevelt. Partindo de uma pequena base, tornou-se na força política dominante nos últimos 30 anos, expandindo os seus princípios muito para além dos EUA e nunca se circunscrevendo à influência estritamente política. Naquilo que, aliás, foi a melhor das apropriações do conceito de hegemonia de Gramsci, esta combinação de proselitismo político com messianismo ideológico e desregulação económica percebeu bem a importância do “combate cultural”, promovendo as suas ideias em revistas, ‘think tanks’ e, mais tarde, em ‘blogs’. Bush foi apenas um dos homens escolhidos para personificar este movimento.

É por isso que se hoje o mundo não encontra solução viável para o problema criado no Iraque, se os mesmíssimos actores que “regularam” o sistema financeiro nas últimas décadas aparentam lavar as mãos do caos instalado em Wall Street, as causas para que assim seja devem ser buscadas não em George W. Bush, mas, sim, no movimento político que, desde os anos 60, tem como principal objectivo contrariar as conquistas do New Deal.

Este é o argumento principal do economista Paul Krugman, no seu mais recente livro, “The Conscience of a Liberal”. Enquanto o New Deal assentou na valorização do papel regulador do Estado e fez do combate às desigualdades de rendimento o aspecto central da acção política, o objectivo primordial do movimento conservador foi contrariar esta tendência, ou seja, em última análise, limitar o papel das políticas públicas capazes de contrariar as desigualdades na distribuição de rendimento. A herança dos últimos 30 anos está hoje à vista: crescimento económico medíocre, despesa pública descontrolada muito em virtude do esforço militar, caos financeiro e desigualdades próximas do padrão dos anos vinte.

Mas, argumenta ainda Krugman, este movimento foi ainda responsável por um acentuar da polarização política. Enquanto desde os anos 30, crescimento económico e distribuição mais equitativa de rendimentos andaram de mão dada com uma diminuição do antagonismo político entre o campo democrata e republicano, desde o início dos anos oitenta, tem-se vivido tempos de acentuada polarização política. Aquilo a que se assistiu não foi a uma radicalização do centro-esquerda; pelo contrário, numa asserção que é válida para todo o Ocidente, é difícil argumentar que os governos social democratas desde os anos 80 tenham governado mais à esquerda. O mesmo já não é possível de dizer relativamente aos governos de direita, muitos claramente guinaram à direita, radicalizando também o seu discurso político.

Se os sinais de que um ciclo está a acabar são evidentes, a questão que se coloca é o que fazer agora? Uma questão que não se limita à política norte-americana, até porque é sabido que as tendências políticas dos EUA mais cedo ou mais tarde chegam à Europa.

A sugestão de Krugman é olhar de novo para o New Deal. Naturalmente que o que está em causa não é aplicar as soluções que funcionaram no passado, até porque quer a natureza das circunstâncias, quer a dos problemas sociais variou substancialmente. O que importa é sublinhar que sociedades mais igualitárias, onde as classes médias são dominantes, não emergem automaticamente, através da acção natural do mercado. Pelo contrário, têm de ser criadas através da acção política. Essa é, ainda hoje, a principal lição do New Deal: as desigualdades na distribuição de rendimento não são o resultado de forças que não podemos controlar e o reformismo político é um poderoso antídoto para o fatalismo. Desse ponto de vista, nenhuma das dificuldades que hoje enfrentamos é superior às que os EUA enfrentavam nos anos 20. E hoje, como no passado, o objectivo político principal de um movimento progressista deveria ser o combate às desigualdades. Um tema particularmente relevante em Portugal, onde, garantidas as liberdades políticas, a persistência de intoleráveis desigualdades de rendimento continua a ser a principal ameaça ao exercício da liberdade individual.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, março 11, 2008

Um partido sem massas

Há uma velha asserção que diz que as instituições têm memória. Contudo, se pensarmos nos partidos portugueses, somos levados a pensar que tal não é verdade. Esta semana temos mais uma prova disso mesmo, desta feita com o PS.
Numa altura em que a contestação de rua assumiu particular intensidade, o PS agendou um comício para o próximo fim-de-semana. Se bem que marcado para assinalar os três anos de Governo, ao fazê-lo coincidir com a manifestação impressionante dos professores, foram dados sinais de que o objectivo é responder à rua com rua. Esta opção não só contraria a história recente do PS, como tem pouco a ver com a identidade do partido.
É sabido que, ao contrário dos seus congéneres europeus, o PS não foi criado de baixo para cima, através de movimentos sociais, mas, pelo contrário, nasceu de cima para baixo, resultando da vontade de elites, muitas delas ligadas às profissões liberais. Isto deveu-se à existência de uma ditadura que não só proibiu a criação de partidos livres, como reprimiu qualquer forma de organização da sociedade civil não tutelada. O código genético do PS ficaria indelevelmente marcado por este acto fundador. E ficou marcado com aspectos negativos, mas que coexistem também com um legado positivo.
Entre as dimensões mais negativas da ausência de um movimento social organizado da qual emanou o PS, encontra-se o carácter pouco ou nada orgânico da representação de interesses no partido, ao qual estão associados níveis significativos de volatilidade ideológica e de plasticidade programática.
Mas há outra face desta moeda. Ao contrário dos partidos onde o encastramento social é mais forte, o PS, sempre que quis modernizar a sua agenda governativa, encontrou poucos pontos de veto e, no que é mais importante, pôde fazê-lo abrindo-se à sociedade. Não por acaso, os governos socialistas caracterizam-se pela presença de muitos independentes, no que é uma singularidade europeia que se tem revelado instrumental para compensar a fraca representação social do partido. Neste sentido, se dividirmos os partidos de matriz socialista entre mais conservadores (isto é, aqueles que menos se afastaram da sua matriz fundadora) e mais modernizadores (os que mais mudaram), o PS sempre fez parte do segundo grupo.
Este legado explica, em importante medida, que o PS tenha organizado a sua presença no espaço público com autonomia face a alguns dos mecanismos tradicionais dos partidos de massas (por exemplo, os comícios, mas, também, as manifestações de rua). Com excepção dos anos quentes da transição democrática, o PS nunca utilizou a rua como arma. E nunca o fez porque, realisticamente, não o consegue fazer. Por exemplo, a manifestação que o PCP organizou há um par de semanas em Lisboa, seria impensável para o PS.
Neste contexto, José Sócrates escolheu acentuar o que foi tradicionalmente a marca do PS, em lugar de tentar alterá-la. Aliás, é isto que faz com que não façam sentido as críticas que dizem que este PS é muito diferente do do passado. Para o bem, mas, também, em larga medida, para o mal, o PS de hoje é apenas uma nova versão das características de sempre. Foi assim que o Governo construiu a sua imagem através de uma agenda modernizadora, apoiando-se numa “maioria silenciosa”, que não se expressa na rua, mas que encontra eco nas sondagens. Enquanto cada grupo profissional reagia à vontade reformadora do executivo, este procurava respaldo no interesse geral. Ainda que isto tivesse ocorrido com fraca capacidade para produzir um sentido global para a sua acção.
É por isso que não pode deixar de ser visto com perplexidade que, no momento de mais intensa contestação à sua acção, o Governo procure responder à rua com rua. O PS nunca foi um partido de massas e essa tendência intensificou-se. A aposta numa resposta de rua, aliás, só pode ser vista como sinal de alguma desorientação estratégica. Algo que este Governo nunca havia revelado e onde reside grande parte do seu potencial eleitoral, designadamente na capacidade de captar votos para além do seu núcleo duro de eleitores. Mas, desde a opção sobre a construção do novo aeroporto e em particular desde a remodelação do Ministro da Saúde, há sinais de que o Governo aparenta ter escolhido a opção conservadora por relação à modernizadora. Ora, as mudanças de identidade a meio do percurso não costumam trazer vantagens eleitorais e esquecer a memória partidária muito menos.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, março 04, 2008

A Lição de Obama

Quando hoje à noite se realizarem as primárias do Ohio e do Texas, a escolha do candidato democrata ficará encerrada. Contudo, independentemente do resultado, estas eleições já tiveram um vencedor: Barack Obama. O Senador do Illinois marcou a campanha e, acima de tudo, definiu os termos do debate.

O aspecto mais relevante da campanha de Obama – e que explica muito do entusiasmo gerado – não se prende com a apresentação de políticas assentes em soluções técnicas inovadoras. Pelo contrário, é difícil encontrar na primeira linha da sua argumentação propostas políticas concretas. Mas o que poderia ser visto como uma fragilidade é substituído por aquilo que é a sua principal força: a capacidade de mobilização pela palavra através da construção de uma narrativa sobre o passado dos EUA, mas que se projecta no futuro.

Desse ponto de vista, a campanha de Obama veio relembrar o que tem sido frequentemente esquecido: a política é uma conversa colectiva dos cidadãos sobre a coisa pública. Ora, como tem acontecido um pouco por todo o lado, quanto mais esta dimensão é desvalorizada e substituída por uma disputa entre soluções técnicas alternativas, menos relevantes se tornam as clivagens políticas – o que, por sua vez, faz crescer a tendência para o afastamento dos cidadãos da política. Quando a diferença é ténue, a propensão para participar enfraquece.

O discurso de Obama assenta em dois grandes pilares: por um lado, o envolvimento cívico e o espírito de comunidade – ou seja, a ideia de que o bem comum não depende necessariamente de mais governo, mas, sim, da participação de todos; por outro, o que pode ser classificado como optimismo realista – uma visão do futuro que não é cega face às dificuldades. Pelo contrário, reconhece que a dimensão das resistências à mudança implica a mobilização colectiva de vontades, baseada numa narrativa optimista quanto ao futuro.

Robert Reich, que foi ministro do Trabalho da primeira administração Clinton e que conhece o ex-presidente desde a juventude, num texto no seu ‘blog’, chama precisamente a atenção para o modo como na campanha de Obama ecoam as campanhas de John e Robert Kennedy. Reich sublinha contudo que, tal como Obama, nem John nem Robert Kennedy eram idealistas. Eram sim realistas que reconheciam a importância do idealismo para servir o realismo, que percebiam que as aspirações morais ajudam a mobilizar politicamente as nações.

Num notável discurso depois da derrota nas primárias do New Hampshire – entretanto musicado e tornado num dos videos mais vistos do YouTube – Obama antecipou que a sua campanha seria tratada por hordas de cínicos apenas como um exercício de retórica superficial, baseado num romantismo ingénuo. Mas, como lembra ainda Reich, convém recordar a inspiração que subsiste da acção dos Kennedy e o modo como, ainda hoje, essa é a referência para a participação de muitos na coisa pública.

Provavelmente, desde então, ninguém tinha conseguido envolver, de modo tão intenso, tantos na “conversa sobre a política” como Obama. Os níveis de participação nas primárias democratas, o envolvimento dos jovens e de muitos outros que tendem a votar menos, são os principais sintomas de que algo de novo se está a passar. Algo que só encontra paralelo nas campanhas idealistas, mas que provaram ser capazes de transformar a coisa pública como as dos irmãos Kennedy.

Há uma lição a retirar da campanha de Obama: a política não pode ser reduzida a uma disputa entre soluções técnicas.
Naturalmente que a definição de boas políticas é importante, mas Obama está aí para demonstrar que o fundamental é a capacidade de desenvolver uma narrativa mobilizadora, que olhe para o futuro com optimismo realista. Enquanto, como acontece por exemplo em Portugal, o essencial da política assentar em sucessivos acertos de contas com o passado, combinados com discursos de passa-culpas e com meia-dúzia de metas quantificadas, a possibilidade de, de novo, mobilizar as vontades de todos será irremediavelmente diminuta. Como mostra Obama, é preciso redescobrir o papel da palavra para a política. Uma redescoberta que pode ajudar a que nos afastemos das campanhas pré-formatadas e das diferenças baseadas em pormenores. No fundo, campanhas que têm levado a uma espiral de subvalorização afectiva da política.

publicado no Diário Economico.