terça-feira, setembro 19, 2006

uma questão ideológica?

A reforma da segurança social trouxe a ideologia de volta à disputa política. Pelo menos a crer nas declarações do primeiro-ministro e dos restantes líderes partidários. Para Marques Mendes, Sócrates recusa a ”proposta” do PSD por teimosia ideológica, já Sócrates aproveita o papão da ”privatização” para piscar o olho à esquerda. Entretanto, Louçã e Jerónimo repetem, pela enésima vez, que este executivo governa à direita.

Se a ideologização da discussão política é útil, pois ajuda a enquadrar as escolhas, é também contraproducente quando os termos em que é feita assentam em equívocos. É o que tem acontecido nos últimos dias no debate sobre segurança social.

Primeiro de tudo, uma clarificação. A recusa dum pacto entre Governo e PSD não depende de nenhum princípio ideológico. Basta um mínimo de pragmatismo na gestão da coisa pública para perceber que os custos de transição dum sistema como o português, baseado na repartição, para um sistema, como o enunciado pelo PSD, que combine repartição com plafonamento vertical são insustentáveis.

Acontece que nem a rejeição que o Governo tem feito da proposta do PSD tem a ver com opções ideológicas sobre segurança social, nem a proposta do PSD contribui para aumentar a sustentabilidade futura do sistema. É que quem acha que ao defender um modelo de repartição está a defender um modelo social historicamente arquitectado pela esquerda está equivocado; do mesmo modo que quem pensa que o futuro da segurança social depende duma opção pela capitalização falha completamente o alvo, optando por envolver o debate num improdutivo fetichismo ideológico.

O modelo de pensões português tem um lastro pesado, com raízes no Estado Corporativo e, como todos os sistemas bismarckianos, é conservador, revelando particular imobilismo institucional. Historicamente, o nosso modelo ajudou a aprofundar a clivagem entre ‘insiders’ e ‘outsiders’ e mesmo com o esforço feito ao longo da democracia, a sua capacidade redistributiva é insuficiente e a sua eficácia reside, essencialmente, na capacidade de reproduzir um determinado equilíbrio social, previamente existente. Não deixa, por isso, de ser paradoxal ver a esquerda e os sindicatos a defenderem o modelo português.

Mas mudar um sistema de pensões não é algo que se faça com ligeireza. Como nos ensina a literatura neo-institucionalista sobre reformas de pensões (por todos, veja-se a obra de Paul Pierson), os custos associados à mudança de modelo são superiores à continuidade dos sistemas existentes, mesmo quando estes não são óptimos. Não por acaso, pese embora a retórica, as rupturas políticas mais profundas pouco mudaram a arquitectura dos sistemas de pensões. Podemos não simpatizar com um determinado modelo de pensões, mas achar que por arte política ele é transformável numa outra coisa é, no mínimo, irrealista. O caminho passa por recalibrar com realismo os sistemas herdados. É um daqueles casos em que é mesmo preciso ”fazer as contas”.

A proposta do PSD não só padece destes males, como tem produzido um dano colateral da maior importância: afastou o debate sobre a segurança social dos seus aspectos nucleares. O que garante a sustentabilidade futura não é a opção entre repartição e capitalização. Os sistemas de repartição e de capitalização são sustentáveis, de modo idêntico, se as economias mostrarem dinamismo, se a taxa de emprego aumentar, se a natalidade voltar a crescer e, não menos relevante, se a protecção social evoluir duma lógica conservadora, excessivamente centrada na protecção dos riscos sociais tradicionais para um investimento no futuro – por exemplo através duma política moderna de apoio à família e da facilitação da entrada dos jovens no mercado de trabalho. Para todos estes factores, a segurança social pode dar um contributo inestimável, desde que sejam feitas rupturas políticas corajosas, que reorientem o contrato social em que assenta o Estado Providência.

A proposta do PSD teve, desde já, uma consequência: afastou a discussão da proposta sustentada que Governo e parceiros discutem há meses na concertação social e centrou o debate num fetichismo ideológico que agrada à táctica política, independentemente dos quadrantes. Governo, oposições, parceiros sociais, ninguém resistiu. Se há matéria onde a clivagem ideológica é hoje particularmente relevante é a segurança social. Contudo, não nos termos em que o PSD a colocou.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, setembro 05, 2006

”O Independente” não acabou

”O Independente” acabou na passada sexta-feira. A propósito escreveram-se muitos lamentos, no essencial sublinhando que, tendo em conta que o jornal fundado por Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas tinha produzido uma ruptura com o Portugal cinzento e amorfo do final dos anos oitenta, o seu fim representava um regresso a esse mesmo País. Com a diferença de que onde antes estava Cavaco está agora Sócrates. Do mesmo modo, o encerramento de ”O Independente” faria diminuir as opções disponíveis na imprensa portuguesa, recuando o País a uma situação de hegemonia da comunicação social supostamente baseada numa neutralidade ideológica. Acontece que ”O Independente” não acabou, o que acabou foi apenas uma versão pífia do jornal que se arrastava pelas bancas há uma série de anos.

Para o bem e para o mal, as três características principais que estiveram na base de ”O Independente” fizeram caminho na sociedade portuguesa: um olhar cínico sobre a política; a escrita arejada e irónica e a tentativa de refundar a direita. ”O Independente” combinou de modo inédito esses traços e apesar do fim do título – de facto há uma década e formalmente na semana passada – o seu estilo contaminou toda a comunicação social portuguesa e não só. A este propósito, basta navegar um pouco pela blogoesfera portuguesa para rapidamente se perceber que estas três características são quase hegemónicas.

Mas se o Caderno 3 representou, de facto, uma ruptura geracional com a abordagem da cultura na imprensa escrita, ajudando a conquistar muitos leitores que não se reviam nas opções ideológicas do jornal, já ”O Independente” como projecto político nada de bom trouxe à sociedade portuguesa.

Sob uma suposta manta de jornalismo de investigação, o que se escondeu invariavelmente foi um jornalismo baseado nas fontes anónimas e na calúnia frequentemente impune. A investigação, afinal, limitava-se nuns casos a inaugurar uma relação promíscua entre imprensa e investigação judicial (que passariam a funcionar como aliados, pondo fim à asserção tantas vezes repetida de que ”à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”) e noutros a amplificar a política baseada na intriga feita nos corredores do poder pelo ”inimigo interno”.

Foi também com ”O Independente” que a arma populista primeiro se revelou como instrumento privilegiado para servir um projecto político-partidário. O PP de 1995 de Monteiro/Portas/Moura Guedes, com os sinistros ‘outdoors’ com tachos, só era possível porque tinha existido antes ”O Independente”, onde transvestido de jornalista, Paulo Portas fazia política. E aí não se olhava a meios: se era preciso promover um secretário de Estado, nada como acusar um ministro de roubar uma manta num avião; se era preciso sublinhar o cosmopolitismo, bastava promover uma ignóbil campanha baseada no racismo social, como a que foi feita contra Macário Correia.

É verdade que ”O Independente” deu visibilidade a muitos casos de corrupção e clientelismo associados à política. Mas se o preço a pagar pela revelação de algumas verdades é o lançar lama sobre uma classe inteira e sobre uma esfera essencial da vida pública, tenho dúvidas que valha a pena. Sei que a corrupção está a corroer a credibilidade da política, mas sei também que essa credibilidade está a ser igualmente destruída pelos olhares cínicos e pela calúnia impune que desde ”O Independente” se tornaram moda. Além de que nada protege melhor os verdadeiros corruptos e prevaricadores do que o envolvimento leviano de quem tem condutas exemplares.

O problema é que enquanto ”O Independente” acabou, deixando jornalistas no desemprego e calúnias por serem ressarcidas, pelo menos materialmente, a lógica que inaugurou mantém-se presente na comunicação social portuguesa. Hoje, ”O Independente” já não existe, mas a classe política mantém-se suspeita até prova em contrário, o sistema judicial acusa na praça pública sem provas minimamente sólidas e a comunicação social alimenta parangonas e não se coíbe de destruir reputações de forma leviana, ficando impune. Se para romper com o cinzentismo cultural e jornalístico do Portugal dos anos oitenta era preciso chegarmos ao estado em que nos encontramos, que regresse então o cinzentismo e com ele a seriedade.

publicado no Diário Económico.