terça-feira, abril 28, 2009

Uma revolução tranquila

Nada diminui tanto a nossa capacidade colectiva como país e o potencial individual de muitos portugueses como o défice de qualificações.

De acordo com dados da OCDE, apenas 28,3% dos portugueses tinha um grau de escolaridade equivalente ao ensino secundário, o valor mais baixo dos países da organização. Estes números têm consequências reais: por um lado, contribuem para a reprodução geracional da desigualdade naquela que é a sociedade mais desigual da Europa; por outro, colocam em risco a capacidade adaptativa do nosso tecido económico. Aliás, ainda de acordo com estimativas da OCDE, o PIB português poderia ter crescido mais 1,2 pontos percentuais por ano, entre as décadas de 1970 a 1990, se os nossos níveis de escolaridade estivessem equiparados à média.

À partida, este contexto obrigaria a que já há muito tempo se tivesse avançado no alargamento da escolaridade obrigatória para os 18 anos. Acontece que não se mudam as sociedades por decreto e caso se tivesse decidido alargar a escolaridade obrigatória sem dar outros passos prévios, muito provavelmente a consequência seria um incremento do abandono escolar precoce (outra das chagas nacionais).

Numa sociedade com défices de qualificação assentes num pesado lastro geracional, a generalização da escolaridade só é exequível se assentar em importante medida nas vias profissionalizantes. Ora também neste aspecto Portugal tem um défice crónico: enquanto, entre nós, a percentagem de alunos do secundário que, em 2001, frequentava as vias vocacionais se situava em redor dos 23%, na média da OCDE essa mesma percentagem era de 47,5% e na média da UE, de 60%. É por isso que a aposta nas vias profissionalizantes enquanto instrumento central para a promoção da qualificação foi não só o mais importante dos passos prévios que torna hoje possível o alargamento da escolaridade obrigatória, como tem sido uma autêntica revolução tranquila, um processo reformista silencioso, mas que vai à raiz dos nossos défices estruturais.

A generalização dos cursos profissionalizantes, ao mesmo tempo que contrariou a subalternização dos saberes operativos por relação aos abstractos no nosso sistema educativo, revelou-se decisiva para que nos últimos anos se tivesse assistido a um aumento da frequência escolar em todos os escalões etários. Por exemplo, matricularam-se este ano, no 10º ano, em vias profissionalizantes, cerca de 50% dos alunos, quando, no passado recente, esse valor não ultrapassava os 30%.

Contudo, o alargamento da escolaridade obrigatória não deve ser feito sem que exista um consenso entre as principais forças políticas e sem que se cuide de planificar os passos que têm de ser dados. E quanto a este aspecto, sobram ainda muitas questões e poucas respostas. O que nos recorda que há outra dimensão em que temos de contrariar um défice crónico: a planificação das políticas públicas.

publicado no Diário Económico.

quarta-feira, abril 22, 2009

Uma bicicleta para cada um

José Sócrates chegou a esta entrevista durante uma tempestade perfeita: uma crise económica e social sem paralelo na história recente e que vem agravar os défices estruturais do país; conflitualidade institucional com a Presidência da República e, claro, o caso FreePort.
A entrevista – um formato com escassa intermediação e no qual Sócrates se sente particularmente à vontade – revelou um primeiro-ministro determinado (reconhecendo que carrega uma cruz com o caso Freeport, mas que “não é desta forma que o vencem”); a negar o arrefecimento das relações institucionais com Belém (o que só é explicável por avisada prudência política) e a revelar mais uma medida para diminuir o impacto da crise (o alargamento do acesso ao subsídio social de desemprego).
Sem grandes novidades nos argumentos, houve, contudo, uma metáfora usada por Sócrates que sintetiza bem o que será este ano político: “cada um tem de puxar a sua bicicleta”. Um recado que pareceu ser também destinado a Cavaco Silva.
Por relação aos seus competidores directos, o “ciclista” Sócrates tem, contudo, manifestas vantagens (à cabeça o facto de ser o único candidato à “camisola amarela”, a primeiro-ministro), mas resta saber se a determinação será suficiente. Uma das consequências de uma tempestade perfeita é deixar as “bicicletas” em bastante mau estado. Com o desemprego a crescer, com a economia em recessão e com o caso Freeport a “envenenar” o debate político, não basta a Sócrates puxar a sua bicicleta para renovar a maioria absoluta. É esse o drama político desta crise.

comentário à entrevista de José Sócrates, publicado no DN.

terça-feira, abril 21, 2009

A indignação selectiva

Foi preciso esperar que o G20 decretasse o fim da era do secretismo bancário para que fosse finalmente aprovada a possibilidade da administração fiscal ultrapassar o sigilo bancário, de modo a detectar riqueza injustificada e não declarada.

Como seria de esperar, este passo gerou muitas reacções indignadas. Paulo Rangel chegou mesmo a dizer que estávamos perante "um bárbaro ataque ao Estado de Direito". Sinceramente, custa-me a perceber tanta indignação selectiva. Pelo menos desde 1996 que há um grupo social em Portugal para o qual não existe sigilo bancário: os pobres. Claro, exigirmos aos pobres o que não é exigido a mais ninguém também pode ser considerado um bárbaro ataque ao Estado de Direito; com a diferença que ninguém se indigna com isso.

Para que nos entendamos, a atribuição do rendimento mínimo depende da apresentação dos extractos das contas bancárias do requerente. Esta opção, aliás, foi fazendo escola nas políticas de mínimos sociais. Mais recentemente, a atribuição do complemento solidário aos pensionistas ficou também sujeita à "violação" do sigilo bancário por parte da administração.

Num país com níveis de desigualdade social sem paralelo na Europa Ocidental, estas exigências exclusivas dos mais pobres podem ser vistas como um ultraje, a somar aos que já decorrem de viver com escassos rendimentos numa sociedade que já não é pobre. Contudo, podem também ser vistas como uma forma de promover a aceitação pública das medidas de combate à pobreza. Se formos exigentes na atribuição das prestações, é provável que a sua robustez política seja maior.

Do mesmo modo que os níveis de pobreza em Portugal são uma mancha que nos devia envergonhar como comunidade, a extensão da evasão fiscal limita a nossa capacidade redistributiva e reproduz desigualdades, desde logo entre os que pagam mesmo impostos e aqueles que recorrem a esquemas criativos de "planificação fiscal".

Permitir que um director-geral tenha acesso às contas bancárias dos contribuintes é um acto que carece de fundamentação precisa (e, na verdade, não se ficou a perceber os contornos do que foi aprovado na semana passada), mas convenhamos que este é um país com uma escala de prioridades estranha. Enquanto assistimos a uma grande indignação perante a compressão de direitos dos que, ganhando muito, fogem ao fisco, quando se trata de pobres, a única indignação é com a fraude no benefício de prestações. A lição a tirar é por isso só uma: se fores pobre e fingires que és muito pobre, já sabes, vamos estar de olho em ti; se fores muito rico e te fizeres passar por rico, já sabes, estaremos cá para proteger os teus direitos.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, abril 14, 2009

A corrupção e a corrosão

á uma afirmação que se tornou uma verdade quase insofismável: a corrupção está a corroer os alicerces da nossa democracia. Peço desculpa, mas o que está a corroer a democracia são os casos em que foi criada a percepção no espaço público de que alguém era corrupto sem que depois seja produzida prova necessária a uma condenação.

Ou seja, regressamos ao problema de sempre: as debilidades da investigação em Portugal e o modo como as suas insuficiências tendem a ser colmatadas com informação passada a conta-gotas para a comunicação social. Pelo caminho, enquanto os verdadeiros culpados de ilícitos têm boas razões para se sentirem confortáveis, um inocente deve ficar muito preocupado. Um culpado sabe que tem poucas probabilidades de ser condenado e um inocente pode ter a certeza que, no mínimo, a dúvida sobre a sua culpabilidade ficará a pairar.

Estamos por isso no pior dos cenários. Uma percepção generalizada de que a corrupção está a aumentar, combinada com um sentimento de impunidade de quem é corrupto. Perante isto, o que nos é sugerido é que, por um lado, se avance na tipificação jurídica de mais crimes e, por outro, que se dê uma machadada em alguns direitos fundamentais.

Se vivêssemos num país onde fosse possível confiar na investigação judicial e na capacidade de fazer prova de factos criminosos pelo Ministério Público, poderíamos estar descansados perante a diminuição das prerrogativas dos cidadãos perante o Estado. Contudo, em Portugal os exemplos de investigações medíocres são por demais conhecidos para que possamos inverter, ainda que apenas em relação à corrupção, o princípio do ónus da prova. Afinal, se temos tantas investigações assustadoramente mal conduzidas em Portugal, por que razão é que a corrupção passaria a ser bem investigada se abdicássemos desse direito fundamental que é o princípio da presunção da inocência?

Depois, sabemos também que os direitos fundamentais raramente tendem a ser retirados de uma assentada só. O processo é sempre paulatino: em nome da resposta à criminalidade, baixa-se a idade de imputabilidade; em nome da segurança rodoviária, introduz-se um ‘chip' nos automóveis; em nome do combate à corrupção, inverte-se o ónus da prova. Quando dermos por isso, já vai ser tarde.

A corrupção é um assunto demasiado sério. Mas resta saber se ela se combate através da solução preguiçosa de tipificar mais crimes, criar mais observatórios e diminuir direitos. Não seria bem mais importante ter uma discussão séria sobre os processos de decisão administrativa central e local? Aí sim há zonas cinzentas e procedimentos opacos que criam um contexto propício à corrupção. O problema é que é bem mais fácil aprovar uma nova lei e com isso arrumar o tema na gaveta durante uns tempos do que aprofundar a formalização, a transparência e o escrutínio das decisões dos agentes públicos.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, abril 07, 2009

O resto da agenda

Mesmo os mais cépticos reconhecem o sucesso da Cimeira de Londres. Há boas razões para isso: temas que, até há bem pouco seria impensável que estivessem no topo da agenda, dominam hoje as discussões.

De um momento para o outro, a regulação, a transparência e regras sobre remunerações no sistema financeiro deixaram de ser temas marginais. Como sublinhava Will Hutton no Observer, esta reunião do G20 foi a consumação dos rituais fúnebres do capitalismo financeiro tal como ele existiu nos últimos anos, com as suas injustiças e ineficiências. Poder-se-á, com razão, sublinhar que, relativamente aos temas politicamente mais sensíveis, foram dados poucos passos concretos. Esta Cimeira deve ser vista como o começo de um processo, além de que, pela primeira vez desde o início da crise, de uma reunião deste tipo saíram conclusões mais ambiciosas do que as expectativas que estavam criadas (ex. o reforço financeiro do FMI). Há, por isso, boas razões para algum optimismo, mas há contudo um problema que persiste.

Mesmo que se avançasse muito na institucionalização da regulação global, que os estímulos à procura fossem bem mais significativos e que os recursos financeiros do FMI fossem ainda maiores, não seria nem suficiente para ultrapassar a situação em que nos encontramos, nem serviria para garantir que os desequilíbrios sistémicos não regressariam com igual vigor, passado pouco tempo. Há, na verdade, um tema que, sendo uma causa determinante da actual crise, tem, contudo, ocupado um papel marginal na agenda política.

Esse tema é o dos desequilíbrios crónicos entre países com excedentes e países com défices comerciais. Na verdade, não existe uma saída sustentável para a crise, enquanto persistir a clivagem entre, por um lado, países que podem estimular a poupança e uma disciplina orçamental rigorosa ao nível da despesa e, por outro, países que alimentam as importações à custa de desequilíbrios orçamentais, usados para mascarar défices comerciais.

Além do mais, estes desequilíbrios na balança global de pagamentos estão na génese da instabilidade financeira. Afinal, foram os fluxos financeiros entre países deficitários e países com excedentes, mas com moedas com câmbios fixos (a armadilha do dólar chinesa, como lhe chama Paul Krugman), que promoveram a proliferação de produtos financeiros, no mínimo, opacos.

As exportações da China, da Índia e da Alemanha - para dar os exemplos paradigmáticos - só são possíveis de manter aos níveis actuais enquanto os EUA, os países do alargamento ou Portugal alimentarem a procura. O problema é que este caminho não é sustentável ad eternum. Há naturais limites para que, por exemplo, a Alemanha se abstenha de fazer estímulos à procura interna, fazendo depender a sua política económica das exportações para países com dificuldades orçamentais (por exemplo, Portugal). Uma de duas coisas tenderá a acontecer: ou a bancarrota dos países que consomem ou, em alternativa, um arrefecimento repentino das exportações nos países com excedentes.

Aliás, a realidade já se está a encarregar de confirmar esta possibilidade. Como chamava a atenção Wolfgang Munchau no Financial Times, os países com défices significativos na balança corrente de pagamentos estão, neste momento, a cortar drasticamente o consumo de bens importados. O resultado é que o excedente combinado da China, Índia e Japão está a diminuir de forma impressiva. Com uma consequência: o comércio mundial vai colapsar a um ritmo mais rápido do que durante a "grande depressão".

O último ano ensinou-nos que não há verdades insofismáveis na economia - da auto-correcção dos mercados, à superioridade da natureza privada do sistema bancário, passando pelo controlo dos défices "elevados", todos os princípios sacrossantos foram caindo a uma velocidade vertiginosa. Resta um tema que tem estado afastado da discussão e que precisa de ser tratado de modo sério: o comércio livre.

Se o processo que se iniciou em Londres na passada semana dá motivos para estarmos moderadamente optimistas, é necessário que as próximas cimeiras do G20 introduzam na agenda o comércio global. Não se trata de fazer assentar a discussão na falsa dicotomia entre comércio livre versus proteccionismo, mas de ter uma discussão séria sobre como corrigir, na raiz, os desajustamentos globais de que hoje são vítimas as economias de todos os países. Quanto mais cedo se juntar este tema aos que já estão a ser discutidos, mais rapidamente será possível ultrapassar a crise. Seria impensável que o mundo tivesse de esperar por uma diminuição brutal das exportações alemãs ou chinesas para que alguma coisa fosse feita.

publicado no Diário Económico.