O resto da agenda
Mesmo os mais cépticos reconhecem o sucesso da Cimeira de Londres. Há boas razões para isso: temas que, até há bem pouco seria impensável que estivessem no topo da agenda, dominam hoje as discussões.
De um momento para o outro, a regulação, a transparência e regras sobre remunerações no sistema financeiro deixaram de ser temas marginais. Como sublinhava Will Hutton no Observer, esta reunião do G20 foi a consumação dos rituais fúnebres do capitalismo financeiro tal como ele existiu nos últimos anos, com as suas injustiças e ineficiências. Poder-se-á, com razão, sublinhar que, relativamente aos temas politicamente mais sensíveis, foram dados poucos passos concretos. Esta Cimeira deve ser vista como o começo de um processo, além de que, pela primeira vez desde o início da crise, de uma reunião deste tipo saíram conclusões mais ambiciosas do que as expectativas que estavam criadas (ex. o reforço financeiro do FMI). Há, por isso, boas razões para algum optimismo, mas há contudo um problema que persiste.
Mesmo que se avançasse muito na institucionalização da regulação global, que os estímulos à procura fossem bem mais significativos e que os recursos financeiros do FMI fossem ainda maiores, não seria nem suficiente para ultrapassar a situação em que nos encontramos, nem serviria para garantir que os desequilíbrios sistémicos não regressariam com igual vigor, passado pouco tempo. Há, na verdade, um tema que, sendo uma causa determinante da actual crise, tem, contudo, ocupado um papel marginal na agenda política.
Esse tema é o dos desequilíbrios crónicos entre países com excedentes e países com défices comerciais. Na verdade, não existe uma saída sustentável para a crise, enquanto persistir a clivagem entre, por um lado, países que podem estimular a poupança e uma disciplina orçamental rigorosa ao nível da despesa e, por outro, países que alimentam as importações à custa de desequilíbrios orçamentais, usados para mascarar défices comerciais.
Além do mais, estes desequilíbrios na balança global de pagamentos estão na génese da instabilidade financeira. Afinal, foram os fluxos financeiros entre países deficitários e países com excedentes, mas com moedas com câmbios fixos (a armadilha do dólar chinesa, como lhe chama Paul Krugman), que promoveram a proliferação de produtos financeiros, no mínimo, opacos.
As exportações da China, da Índia e da Alemanha - para dar os exemplos paradigmáticos - só são possíveis de manter aos níveis actuais enquanto os EUA, os países do alargamento ou Portugal alimentarem a procura. O problema é que este caminho não é sustentável ad eternum. Há naturais limites para que, por exemplo, a Alemanha se abstenha de fazer estímulos à procura interna, fazendo depender a sua política económica das exportações para países com dificuldades orçamentais (por exemplo, Portugal). Uma de duas coisas tenderá a acontecer: ou a bancarrota dos países que consomem ou, em alternativa, um arrefecimento repentino das exportações nos países com excedentes.
Aliás, a realidade já se está a encarregar de confirmar esta possibilidade. Como chamava a atenção Wolfgang Munchau no Financial Times, os países com défices significativos na balança corrente de pagamentos estão, neste momento, a cortar drasticamente o consumo de bens importados. O resultado é que o excedente combinado da China, Índia e Japão está a diminuir de forma impressiva. Com uma consequência: o comércio mundial vai colapsar a um ritmo mais rápido do que durante a "grande depressão".
O último ano ensinou-nos que não há verdades insofismáveis na economia - da auto-correcção dos mercados, à superioridade da natureza privada do sistema bancário, passando pelo controlo dos défices "elevados", todos os princípios sacrossantos foram caindo a uma velocidade vertiginosa. Resta um tema que tem estado afastado da discussão e que precisa de ser tratado de modo sério: o comércio livre.
Se o processo que se iniciou em Londres na passada semana dá motivos para estarmos moderadamente optimistas, é necessário que as próximas cimeiras do G20 introduzam na agenda o comércio global. Não se trata de fazer assentar a discussão na falsa dicotomia entre comércio livre versus proteccionismo, mas de ter uma discussão séria sobre como corrigir, na raiz, os desajustamentos globais de que hoje são vítimas as economias de todos os países. Quanto mais cedo se juntar este tema aos que já estão a ser discutidos, mais rapidamente será possível ultrapassar a crise. Seria impensável que o mundo tivesse de esperar por uma diminuição brutal das exportações alemãs ou chinesas para que alguma coisa fosse feita.
publicado no Diário Económico.
De um momento para o outro, a regulação, a transparência e regras sobre remunerações no sistema financeiro deixaram de ser temas marginais. Como sublinhava Will Hutton no Observer, esta reunião do G20 foi a consumação dos rituais fúnebres do capitalismo financeiro tal como ele existiu nos últimos anos, com as suas injustiças e ineficiências. Poder-se-á, com razão, sublinhar que, relativamente aos temas politicamente mais sensíveis, foram dados poucos passos concretos. Esta Cimeira deve ser vista como o começo de um processo, além de que, pela primeira vez desde o início da crise, de uma reunião deste tipo saíram conclusões mais ambiciosas do que as expectativas que estavam criadas (ex. o reforço financeiro do FMI). Há, por isso, boas razões para algum optimismo, mas há contudo um problema que persiste.
Mesmo que se avançasse muito na institucionalização da regulação global, que os estímulos à procura fossem bem mais significativos e que os recursos financeiros do FMI fossem ainda maiores, não seria nem suficiente para ultrapassar a situação em que nos encontramos, nem serviria para garantir que os desequilíbrios sistémicos não regressariam com igual vigor, passado pouco tempo. Há, na verdade, um tema que, sendo uma causa determinante da actual crise, tem, contudo, ocupado um papel marginal na agenda política.
Esse tema é o dos desequilíbrios crónicos entre países com excedentes e países com défices comerciais. Na verdade, não existe uma saída sustentável para a crise, enquanto persistir a clivagem entre, por um lado, países que podem estimular a poupança e uma disciplina orçamental rigorosa ao nível da despesa e, por outro, países que alimentam as importações à custa de desequilíbrios orçamentais, usados para mascarar défices comerciais.
Além do mais, estes desequilíbrios na balança global de pagamentos estão na génese da instabilidade financeira. Afinal, foram os fluxos financeiros entre países deficitários e países com excedentes, mas com moedas com câmbios fixos (a armadilha do dólar chinesa, como lhe chama Paul Krugman), que promoveram a proliferação de produtos financeiros, no mínimo, opacos.
As exportações da China, da Índia e da Alemanha - para dar os exemplos paradigmáticos - só são possíveis de manter aos níveis actuais enquanto os EUA, os países do alargamento ou Portugal alimentarem a procura. O problema é que este caminho não é sustentável ad eternum. Há naturais limites para que, por exemplo, a Alemanha se abstenha de fazer estímulos à procura interna, fazendo depender a sua política económica das exportações para países com dificuldades orçamentais (por exemplo, Portugal). Uma de duas coisas tenderá a acontecer: ou a bancarrota dos países que consomem ou, em alternativa, um arrefecimento repentino das exportações nos países com excedentes.
Aliás, a realidade já se está a encarregar de confirmar esta possibilidade. Como chamava a atenção Wolfgang Munchau no Financial Times, os países com défices significativos na balança corrente de pagamentos estão, neste momento, a cortar drasticamente o consumo de bens importados. O resultado é que o excedente combinado da China, Índia e Japão está a diminuir de forma impressiva. Com uma consequência: o comércio mundial vai colapsar a um ritmo mais rápido do que durante a "grande depressão".
O último ano ensinou-nos que não há verdades insofismáveis na economia - da auto-correcção dos mercados, à superioridade da natureza privada do sistema bancário, passando pelo controlo dos défices "elevados", todos os princípios sacrossantos foram caindo a uma velocidade vertiginosa. Resta um tema que tem estado afastado da discussão e que precisa de ser tratado de modo sério: o comércio livre.
Se o processo que se iniciou em Londres na passada semana dá motivos para estarmos moderadamente optimistas, é necessário que as próximas cimeiras do G20 introduzam na agenda o comércio global. Não se trata de fazer assentar a discussão na falsa dicotomia entre comércio livre versus proteccionismo, mas de ter uma discussão séria sobre como corrigir, na raiz, os desajustamentos globais de que hoje são vítimas as economias de todos os países. Quanto mais cedo se juntar este tema aos que já estão a ser discutidos, mais rapidamente será possível ultrapassar a crise. Seria impensável que o mundo tivesse de esperar por uma diminuição brutal das exportações alemãs ou chinesas para que alguma coisa fosse feita.
publicado no Diário Económico.
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