Três anos, dois mandatos
Ainda que só tenham passado três anos do mandato de Cavaco Silva como Presidente da República, é possível dividi-lo em dois períodos distintos. Um em que a cooperação estratégica foi a nota dominante e um outro em que se assistiu a um arrefecimento das relações institucionais com o Executivo e, acima de tudo, com o Parlamento.
Numa primeira fase do mandato, o ponto de convergência entre Cavaco Silva e José Sócrates foi a disciplina orçamental. O objectivo da cooperação era claro: reforçar a capacidade política e institucional do Governo para equilibrar as contas públicas e levar a cabo reformas estruturais, improváveis de alcançar sem cooperação entre Belém e São Bento. Mesmo num contexto de maioria absoluta, teria sido bem mais difícil para o Governo aprovar o factor de sustentabilidade na segurança social, reorganizar o parque escolar, introduzir a escola a tempo inteiro ou fazer convergir os regimes de segurança social e eliminar os sub-sistemas de saúde sem o respaldo de Cavaco Silva.
No entretanto, a cooperação estratégica, ainda que não tendo sido varrida para debaixo do tapete, foi perdendo preponderância. O efeito combinado da sucessão de notícias que visam a credibilidade de José Sócrates, com a eleição de Ferreira Leite (a "boa moeda" próxima de Cavaco Silva) para a direcção do PSD e com a chegada da crise internacional alterou o contexto político, transformando lentamente o papel que o Presidente tinha definido para si próprio e colocando em causa as boas relações institucionais. Sem consolidação orçamental como tema hegemónico da política portuguesa, o Presidente formatado pelas finanças públicas tem tido dificuldade em encontrar um discurso político para além do défice, que seja sensível ao novo contexto económico e social. A falta de sintonia entre Belém e São Bento na resposta às manifestações domésticas da crise é, aliás, preocupante, tendo em conta que são hoje necessários níveis de cooperação institucional e estabilidade política bem mais intensos do que os requeridos pela consolidação orçamental. A incapacidade de reinvenção dos termos da cooperação estratégica tem sido a marca dos últimos meses e uma séria ameaça à capacidade de enfrentarmos a crise.
Resta por isso saber se, num ano com três eleições, Cavaco Silva se afastará progressivamente do Governo ou se, pelo contrário, procurará reinventar os termos da cooperação estratégica. Se a primeira opção representaria uma capitulação aos que ambicionam ver a tutela política da oposição a ser exercida desde Belém, algo a que Cavaco Silva tem sabido resistir, a segunda traria manifestos benefícios para o país e seria também instrumental para a sua reeleição.
O tema da reeleição é, aliás, um bom observatório do que se pode passar no próximo ano. Ao contrário dos presidentes anteriores, Cavaco Silva não tem conseguido alargar significativamente a sua base ideológica inicial. A sucessão de vetos políticos em temas que se prendem com a qualidade da democracia (ex. o veto à lei da responsabilidade civil extra-contratual do Estado) e a sua afirmação conservadora nos temas dos costumes (da oposição à lei do divórcio ao anúncio de discordância em relação ao casamento homossexual) têm limitado claramente a sua afirmação à esquerda.
Num momento em que a predisposição do eleitorado para votar à esquerda é manifesta e em que o centro gravitacional da política se deslocou para o reforço das políticas públicas no combate à crise económica e social, a rigidez de Cavaco Silva pode torná-lo no primeiro Presidente a não ter a reeleição garantida.
A menos que Cavaco Silva não pretenda concorrer a um segundo mandato, Presidente e José Sócrates estão por isso condenados a entenderem-se. Ninguém compreenderia que se somasse instabilidade política e institucional à recessão económica e ao desemprego, pelo que num aspecto os interesses de Presidente e primeiro-ministro convergem. Para ambos, da capacidade de cavalgarem a estabilidade política depende a reeleição. Resta saber até que ponto os portugueses vão valorizar a estabilidade e se os dois principais protagonistas portugueses serão capazes de esquecer as divergências e regressar à cooperação. O facto de os seus interesses individuais e os nossos interesses colectivos coincidirem é capaz de ser uma ajuda importante.
publicado no Diário Económico.
Numa primeira fase do mandato, o ponto de convergência entre Cavaco Silva e José Sócrates foi a disciplina orçamental. O objectivo da cooperação era claro: reforçar a capacidade política e institucional do Governo para equilibrar as contas públicas e levar a cabo reformas estruturais, improváveis de alcançar sem cooperação entre Belém e São Bento. Mesmo num contexto de maioria absoluta, teria sido bem mais difícil para o Governo aprovar o factor de sustentabilidade na segurança social, reorganizar o parque escolar, introduzir a escola a tempo inteiro ou fazer convergir os regimes de segurança social e eliminar os sub-sistemas de saúde sem o respaldo de Cavaco Silva.
No entretanto, a cooperação estratégica, ainda que não tendo sido varrida para debaixo do tapete, foi perdendo preponderância. O efeito combinado da sucessão de notícias que visam a credibilidade de José Sócrates, com a eleição de Ferreira Leite (a "boa moeda" próxima de Cavaco Silva) para a direcção do PSD e com a chegada da crise internacional alterou o contexto político, transformando lentamente o papel que o Presidente tinha definido para si próprio e colocando em causa as boas relações institucionais. Sem consolidação orçamental como tema hegemónico da política portuguesa, o Presidente formatado pelas finanças públicas tem tido dificuldade em encontrar um discurso político para além do défice, que seja sensível ao novo contexto económico e social. A falta de sintonia entre Belém e São Bento na resposta às manifestações domésticas da crise é, aliás, preocupante, tendo em conta que são hoje necessários níveis de cooperação institucional e estabilidade política bem mais intensos do que os requeridos pela consolidação orçamental. A incapacidade de reinvenção dos termos da cooperação estratégica tem sido a marca dos últimos meses e uma séria ameaça à capacidade de enfrentarmos a crise.
Resta por isso saber se, num ano com três eleições, Cavaco Silva se afastará progressivamente do Governo ou se, pelo contrário, procurará reinventar os termos da cooperação estratégica. Se a primeira opção representaria uma capitulação aos que ambicionam ver a tutela política da oposição a ser exercida desde Belém, algo a que Cavaco Silva tem sabido resistir, a segunda traria manifestos benefícios para o país e seria também instrumental para a sua reeleição.
O tema da reeleição é, aliás, um bom observatório do que se pode passar no próximo ano. Ao contrário dos presidentes anteriores, Cavaco Silva não tem conseguido alargar significativamente a sua base ideológica inicial. A sucessão de vetos políticos em temas que se prendem com a qualidade da democracia (ex. o veto à lei da responsabilidade civil extra-contratual do Estado) e a sua afirmação conservadora nos temas dos costumes (da oposição à lei do divórcio ao anúncio de discordância em relação ao casamento homossexual) têm limitado claramente a sua afirmação à esquerda.
Num momento em que a predisposição do eleitorado para votar à esquerda é manifesta e em que o centro gravitacional da política se deslocou para o reforço das políticas públicas no combate à crise económica e social, a rigidez de Cavaco Silva pode torná-lo no primeiro Presidente a não ter a reeleição garantida.
A menos que Cavaco Silva não pretenda concorrer a um segundo mandato, Presidente e José Sócrates estão por isso condenados a entenderem-se. Ninguém compreenderia que se somasse instabilidade política e institucional à recessão económica e ao desemprego, pelo que num aspecto os interesses de Presidente e primeiro-ministro convergem. Para ambos, da capacidade de cavalgarem a estabilidade política depende a reeleição. Resta saber até que ponto os portugueses vão valorizar a estabilidade e se os dois principais protagonistas portugueses serão capazes de esquecer as divergências e regressar à cooperação. O facto de os seus interesses individuais e os nossos interesses colectivos coincidirem é capaz de ser uma ajuda importante.
publicado no Diário Económico.
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