A política do carácter
Credibilidade, seriedade, trabalho, verdade. Nos últimos anos, estes termos tornaram-se estruturantes da disputa política, diluindo progressivamente a diferença baseada em distinções ideológicas.
A tendência tem-se acentuado. Dois casos recentes são bem ilustrativos: o cartaz da JSD que chama mentiroso ao primeiro-ministro e a iniciativa "Portugal de verdade" do PSD.
Num caso de modo explícito, noutro não tanto, a sugestão é clara: um dos campos afirma-se pela credibilidade e pela verdade, detendo o monopólio destas categorias. A verdade é naturalmente uma categoria ética louvável, mas como critério para a escolha tem como efeito um empobrecimento da disputa política, funcionando como obstáculo para a afirmação de projectos alternativos. Enquanto os partidos se afirmam pela verdade, evitam objectivamente a diferenciação e, em última análise, transformam a escolha política numa opção entre carácteres - entre quem mente e quem é fiel à verdade. Esta tendência tem vários problemas.
Um primeiro é o empobrecimento dos termos do debate político. O princípio-base da política é a diferença, a negação de que há uma verdade única sobre os factos. O que há são diferentes apropriações, igualmente verdadeiras, dos factos. Ao contrário do que sugeriu Cavaco Silva durante a campanha para as presidenciais, duas pessoas sérias com a mesma informação não têm de concordar. Pelo contrário, espera-se que discordem, alicerçadas num comprometimento com diferentes visões do mundo. Por isso, o recurso sistemático a categorias como verdade e credibilidade, que são categorias morais que remete para o carácter dos protagonistas, torna as escolhas indiferenciadas, não permitindo a mobilização em torno dos projectos enraizados ideologicamente em que devem assentar as preferências de sociedade. Quando a afirmação dos projectos partidários assenta na avaliação do carácter dos protagonistas, estamos perante o grau zero da política.
Sintomaticamente, entre nós, de cada vez que se inicia uma discussão eminentemente política ela é rapidamente substituída por um debate despolitizado. Veja-se como, nas últimas semanas, um debate político relevante - o papel da fiscalidade como instrumento para a promoção da redistribuição - foi rapidamente abandonado, sem que todos os campos políticos tentassem afirmar a sua posição, passe o pleonasmo, política. Com a natural excepção do PS que iniciou o debate e do CDS que não hesitou em posicionar-se criticamente face ao tema (apresentando, aliás, um conjunto de alternativas), os restantes partidos optaram por sublinhar ou a natureza eleitoralista da discussão ou a sua não exequibilidade. De posicionamento político, sobrou pouco. Exemplos deste tipo, envolvendo todos os partidos, não são difíceis de encontrar.
Em segundo lugar, as escolhas políticas baseadas em avaliações de carácter abrem caminho para todos os populismos. Desde logo porque não se conhecem formas credíveis de escrutinar no espaço público os carácteres. Aliás, o que se sabe é que a política baseada na superioridade de carácter resvala, frequentemente, para lideranças fortemente personalizadas, que estão na génese de populismos. De Chavez a Berlusconi, todos os populistas se afirmam pelo carácter exemplar das suas lideranças - exemplificado invariavelmente pelas mais diversas façanhas - e por estes serem detentores da verdade.
Não é preciso andar excessivamente atento para perceber que, nos dias que correm, a mobilização política em Portugal é particularmente baixa.
Num ano com três eleições num curto espaço de tempo e num contexto económico e social já de si muito complexo, este facto não pode deixar de ser visto com preocupação. Tem sido sugerido que esta desmobilização radica, em importante medida, no descrédito da classe política e na relação flutuante desta com a verdade. Contudo, não há nada que afecte tanto a mobilização política como a indiferenciação entre as ofertas partidárias ou a tentativa de, em lugar dos projectos políticos se apresentarem como alternativos, distinguirem-se com base no carácter dos seus protagonistas.
Se nada nos é dado a escolher e o que temos de fazer é optar, como se estivéssemos num plebiscito moral, entre personalidades, torna-se na verdade difícil encontrar uma boa razão para votar.
publicado no Diário Económico.
A tendência tem-se acentuado. Dois casos recentes são bem ilustrativos: o cartaz da JSD que chama mentiroso ao primeiro-ministro e a iniciativa "Portugal de verdade" do PSD.
Num caso de modo explícito, noutro não tanto, a sugestão é clara: um dos campos afirma-se pela credibilidade e pela verdade, detendo o monopólio destas categorias. A verdade é naturalmente uma categoria ética louvável, mas como critério para a escolha tem como efeito um empobrecimento da disputa política, funcionando como obstáculo para a afirmação de projectos alternativos. Enquanto os partidos se afirmam pela verdade, evitam objectivamente a diferenciação e, em última análise, transformam a escolha política numa opção entre carácteres - entre quem mente e quem é fiel à verdade. Esta tendência tem vários problemas.
Um primeiro é o empobrecimento dos termos do debate político. O princípio-base da política é a diferença, a negação de que há uma verdade única sobre os factos. O que há são diferentes apropriações, igualmente verdadeiras, dos factos. Ao contrário do que sugeriu Cavaco Silva durante a campanha para as presidenciais, duas pessoas sérias com a mesma informação não têm de concordar. Pelo contrário, espera-se que discordem, alicerçadas num comprometimento com diferentes visões do mundo. Por isso, o recurso sistemático a categorias como verdade e credibilidade, que são categorias morais que remete para o carácter dos protagonistas, torna as escolhas indiferenciadas, não permitindo a mobilização em torno dos projectos enraizados ideologicamente em que devem assentar as preferências de sociedade. Quando a afirmação dos projectos partidários assenta na avaliação do carácter dos protagonistas, estamos perante o grau zero da política.
Sintomaticamente, entre nós, de cada vez que se inicia uma discussão eminentemente política ela é rapidamente substituída por um debate despolitizado. Veja-se como, nas últimas semanas, um debate político relevante - o papel da fiscalidade como instrumento para a promoção da redistribuição - foi rapidamente abandonado, sem que todos os campos políticos tentassem afirmar a sua posição, passe o pleonasmo, política. Com a natural excepção do PS que iniciou o debate e do CDS que não hesitou em posicionar-se criticamente face ao tema (apresentando, aliás, um conjunto de alternativas), os restantes partidos optaram por sublinhar ou a natureza eleitoralista da discussão ou a sua não exequibilidade. De posicionamento político, sobrou pouco. Exemplos deste tipo, envolvendo todos os partidos, não são difíceis de encontrar.
Em segundo lugar, as escolhas políticas baseadas em avaliações de carácter abrem caminho para todos os populismos. Desde logo porque não se conhecem formas credíveis de escrutinar no espaço público os carácteres. Aliás, o que se sabe é que a política baseada na superioridade de carácter resvala, frequentemente, para lideranças fortemente personalizadas, que estão na génese de populismos. De Chavez a Berlusconi, todos os populistas se afirmam pelo carácter exemplar das suas lideranças - exemplificado invariavelmente pelas mais diversas façanhas - e por estes serem detentores da verdade.
Não é preciso andar excessivamente atento para perceber que, nos dias que correm, a mobilização política em Portugal é particularmente baixa.
Num ano com três eleições num curto espaço de tempo e num contexto económico e social já de si muito complexo, este facto não pode deixar de ser visto com preocupação. Tem sido sugerido que esta desmobilização radica, em importante medida, no descrédito da classe política e na relação flutuante desta com a verdade. Contudo, não há nada que afecte tanto a mobilização política como a indiferenciação entre as ofertas partidárias ou a tentativa de, em lugar dos projectos políticos se apresentarem como alternativos, distinguirem-se com base no carácter dos seus protagonistas.
Se nada nos é dado a escolher e o que temos de fazer é optar, como se estivéssemos num plebiscito moral, entre personalidades, torna-se na verdade difícil encontrar uma boa razão para votar.
publicado no Diário Económico.
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