A grande compressão
As crises profundas podem transformar-se em oportunidades. O que se passou a seguir à Grande Depressão é disto exemplo. Enquanto a sociedade norte-americana ultrapassava a recessão, foram também lançadas as bases de uma nova sociedade.
Os historiadores económicos Claudia Goldin e Robert Margo, num artigo em que analisaram a estrutura salarial nos EUA entre 1940-60, apelidaram o que se passou após a Grande Depressão de Grande Compressão. Enquanto o modelo de economia e sociedade que culminou na recessão dos anos 30 se caracterizava por níveis muito elevados de desigualdade combinados com uma concentração da riqueza nos 10% mais ricos, a sociedade norte-americana a partir dos anos 40 até aos anos 70 caracterizou-se por uma inversão deste padrão, tendo-se verificado uma compressão da dispersão salarial a favor das classes médias.
À partida não era expectável que da crise dos anos 30 resultasse uma sociedade mais igualitária. Desde logo porque a crise afectou mais os que se encontravam na base da pirâmide salarial, nomeadamente os menos qualificados. Há, contudo, um conjunto de factores que ajuda a explicar esta tendência: da introdução do salário mínimo em 1933, passando por uma política activa de qualificação dos activos, que aumentou a oferta de trabalhadores qualificados por relação à procura de pouco qualificados num curto espaço de tempo, e, claro, a política económica durante a II Guerra Mundial (que combinou níveis de emprego muito elevados com controlo dos preços e deu uma nova centralidade ao Estado).
A Grande Compressão teve consequências políticas: criou uma sociedade integradora, tornou a mobilidade social uma perspectiva realista e cooptou para o projecto da democracia liberal as classes médias. Serviu para demonstrar que sociedades com distribuição de rendimentos menos desigual tendem a ser mais democráticas, com maior mobilidade e politicamente mais estáveis. Não por acaso, a crise que hoje vivemos foi antecedida por um novo período em que as desigualdades de rendimento nos EUA se acentuaram e em que a proporção de riqueza concentrada nos 10% mais ricos cresceu excessivamente.
A saída para a crise que hoje enfrentamos implica, naturalmente, capacidade para contrariar a recessão económica e colocar o emprego pelo menos aos níveis anteriores. Mas, se queremos robustecer as democracias, convém colocar as opções políticas ao serviço das classes médias, redistribuindo a seu favor.
Na verdade, este exercício pode ser transposto com vantagem para o caso português. Como é frequentemente lembrado, a sociedade portuguesa tem uma distribuição de rendimentos excessivamente desigual. Ainda que os níveis de desigualdade tenham diminuído ligeiramente nos últimos anos e que tenhamos hoje um conjunto de políticas sociais dirigidas às formas mais severas de pobreza comparável ao dos nossos parceiros europeus.
A criação de riqueza é fundamental para distribuir mais e depende, no essencial, da intervenção a dois níveis: qualificações e padrão de especialização da economia. Com mão-de-obra mais qualificada e com capacidade para produzirmos bens com mais valor e transaccionáveis, os nossos níveis de riqueza serão maiores. Há, contudo, dois problemas. Por um lado, a intervenção nestes factores - que tem vindo a ser feita - não produz resultados no imediato; por outro, mais riqueza não significa, por si só, uma distribuição mais justa.
Quais são então os instrumentos disponíveis para termos um padrão de distribuição de rendimento mais justo? Não há pólvora por inventar. Como também nos revela a história da Grande Compressão, à subida das taxas de imposto para os 10% mais ricos correspondeu, por si só, uma distribuição de rendimentos mais equitativa. Para além dos efeitos redistributivos, há uma questão moral que se coloca em Portugal hoje: após tantos casos de gestão danosa com fraca preocupação com o bem comum, é aceitável que quem tenha um rendimento de cerca de 4.000 euros mensais esteja no mesmo escalão para efeitos de IRS do que quem recebe 20.000 euros? Como recordava Fernando Ulrich há uns meses, a actual conjuntura torna ainda mais premente a necessidade de taxar mais os que mais ganham, daí a necessidade de criar um novo escalão de IRS para os rendimentos muitíssimo elevados. Do mesmo modo que, para proteger mais as classes médias dos efeitos da crise, é fundamental que estas possam fazer deduções maiores com as despesas sociais do que quem se encontra no escalão mais elevado.
À escala portuguesa, precisamos hoje de uma grande compressão, de uma concentração dos rendimentos nas classes médias. A crise que enfrentamos é simultaneamente um pretexto e uma oportunidade para iniciarmos esse debate.
publicado no Diário Económico.
Os historiadores económicos Claudia Goldin e Robert Margo, num artigo em que analisaram a estrutura salarial nos EUA entre 1940-60, apelidaram o que se passou após a Grande Depressão de Grande Compressão. Enquanto o modelo de economia e sociedade que culminou na recessão dos anos 30 se caracterizava por níveis muito elevados de desigualdade combinados com uma concentração da riqueza nos 10% mais ricos, a sociedade norte-americana a partir dos anos 40 até aos anos 70 caracterizou-se por uma inversão deste padrão, tendo-se verificado uma compressão da dispersão salarial a favor das classes médias.
À partida não era expectável que da crise dos anos 30 resultasse uma sociedade mais igualitária. Desde logo porque a crise afectou mais os que se encontravam na base da pirâmide salarial, nomeadamente os menos qualificados. Há, contudo, um conjunto de factores que ajuda a explicar esta tendência: da introdução do salário mínimo em 1933, passando por uma política activa de qualificação dos activos, que aumentou a oferta de trabalhadores qualificados por relação à procura de pouco qualificados num curto espaço de tempo, e, claro, a política económica durante a II Guerra Mundial (que combinou níveis de emprego muito elevados com controlo dos preços e deu uma nova centralidade ao Estado).
A Grande Compressão teve consequências políticas: criou uma sociedade integradora, tornou a mobilidade social uma perspectiva realista e cooptou para o projecto da democracia liberal as classes médias. Serviu para demonstrar que sociedades com distribuição de rendimentos menos desigual tendem a ser mais democráticas, com maior mobilidade e politicamente mais estáveis. Não por acaso, a crise que hoje vivemos foi antecedida por um novo período em que as desigualdades de rendimento nos EUA se acentuaram e em que a proporção de riqueza concentrada nos 10% mais ricos cresceu excessivamente.
A saída para a crise que hoje enfrentamos implica, naturalmente, capacidade para contrariar a recessão económica e colocar o emprego pelo menos aos níveis anteriores. Mas, se queremos robustecer as democracias, convém colocar as opções políticas ao serviço das classes médias, redistribuindo a seu favor.
Na verdade, este exercício pode ser transposto com vantagem para o caso português. Como é frequentemente lembrado, a sociedade portuguesa tem uma distribuição de rendimentos excessivamente desigual. Ainda que os níveis de desigualdade tenham diminuído ligeiramente nos últimos anos e que tenhamos hoje um conjunto de políticas sociais dirigidas às formas mais severas de pobreza comparável ao dos nossos parceiros europeus.
A criação de riqueza é fundamental para distribuir mais e depende, no essencial, da intervenção a dois níveis: qualificações e padrão de especialização da economia. Com mão-de-obra mais qualificada e com capacidade para produzirmos bens com mais valor e transaccionáveis, os nossos níveis de riqueza serão maiores. Há, contudo, dois problemas. Por um lado, a intervenção nestes factores - que tem vindo a ser feita - não produz resultados no imediato; por outro, mais riqueza não significa, por si só, uma distribuição mais justa.
Quais são então os instrumentos disponíveis para termos um padrão de distribuição de rendimento mais justo? Não há pólvora por inventar. Como também nos revela a história da Grande Compressão, à subida das taxas de imposto para os 10% mais ricos correspondeu, por si só, uma distribuição de rendimentos mais equitativa. Para além dos efeitos redistributivos, há uma questão moral que se coloca em Portugal hoje: após tantos casos de gestão danosa com fraca preocupação com o bem comum, é aceitável que quem tenha um rendimento de cerca de 4.000 euros mensais esteja no mesmo escalão para efeitos de IRS do que quem recebe 20.000 euros? Como recordava Fernando Ulrich há uns meses, a actual conjuntura torna ainda mais premente a necessidade de taxar mais os que mais ganham, daí a necessidade de criar um novo escalão de IRS para os rendimentos muitíssimo elevados. Do mesmo modo que, para proteger mais as classes médias dos efeitos da crise, é fundamental que estas possam fazer deduções maiores com as despesas sociais do que quem se encontra no escalão mais elevado.
À escala portuguesa, precisamos hoje de uma grande compressão, de uma concentração dos rendimentos nas classes médias. A crise que enfrentamos é simultaneamente um pretexto e uma oportunidade para iniciarmos esse debate.
publicado no Diário Económico.
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