Um presidente em busca de um papel
Logo na campanha eleitoral, Cavaco Silva identificou a cooperação estratégica entre Presidência e Governo como marca distintiva do que seria o seu mandato. Até recentemente, foi essa a trave mestra das relações entre Cavaco Silva e José Sócrates. A cooperação encontrou no esforço de consolidação orçamental o seu alfa e ómega. O papel do Presidente era claro: reforçar a capacidade institucional e política do Governo para equilibrar as contas públicas.
Os sinais de que os termos desta relação se têm alterado têm sido manifestos: desde a escolha de Alcochete para localização do novo aeroporto, passando pela eleição de Ferreira Leite, alguém muito próximo do Presidente, para líder do PSD, pondo fim a lideranças da “má moeda”, até ao mais recente episódio em torno do Estatuto dos Açores. Já neste fim-de-semana, o semanário Sol dava conta de uma eventual retaliação do Presidente através da não promulgação do orçamento de Estado.
Mas se este conjunto de episódios tem servido para colocar em causa as relações entre São Bento e Belém, no entanto, pouco nos diz sobre qual o novo papel que o Presidente irá desempenhar.
O contexto de crise alterou as regras do jogo, os termos do debate político e consequentemente o papel dos actores. A consolidação orçamental que antes era o tema dominante da agenda política e o ponto de convergência, por excelência, entre Cavaco Silva e Sócrates perdeu preponderância. Nisto, o Governo ganhou capacidade de iniciativa – detém o monopólio dos instrumentos disponíveis para responder à crise – e o Presidente ficou sem papel para representar. O que tinha anteriormente perdeu sentido e há sinais que está perante um trilema sobre qual o novo papel que vai desempenhar: ou regressa à cooperação, reforçando de novo a capacidade do Governo, agora em torno das respostas à crise; ou veste a pele de “Rainha de Inglaterra” (o que tenderia a consolidar a sua popularidade, mas seria politicamente inútil); ou assume o fim da cooperação com o Governo, desempenhando um papel que, objectivamente, ninguém está a desempenhar: o de líder da oposição.
O último barómetro do CESOP da Universidade Católica dá-nos alguns indicadores sobre o modo como os portugueses olham para o Presidente e o papel que este deveria assumir. Cavaco Silva, à imagem dos anteriores Presidentes e no que é um sintoma do síndrome “Rainha de Inglaterra”, é o actor político com níveis de avaliação mais elevados. Contudo, há na percepção do actual Presidente uma singularidade: não é visto como sendo de esquerda ou de direita, isto é, encontra-se acima das clivagens políticas. Desse ponto de vista, imagina-se, é alguém que está para além da disputa partidária – o que em Portugal, ainda que por péssimas razões, é fonte de um enorme capital político. Não por acaso, uma esmagadora maioria dos portugueses (64%), e independentemente da simpatia partidária declarada, defendem que o Presidente deveria ter um papel mais interventivo.
O mais natural é que, uma vez que Cavaco Silva assumisse uma postura mais interventiva, os seus níveis de popularidade baixassem automaticamente. Mas este desejo de maior intervencionismo não pode deixar de influenciar o Presidente e se a ele somarmos o vazio de oposição à direita, estamos perante o cenário ideal para do fim da cooperação estratégica passarmos a uma crescente oposição entre Belém e São Bento. O discurso de ano novo pode ajudar a compreender qual o papel que Cavaco Silva irá desempenhar doravante.
Não tenhamos dúvidas, um Presidente mais interventivo e um Governo em confronto com o Presidente não servirá a nenhuma das partes. Aliás, é um exemplo típico do que a “teoria dos jogos” chama de “dilema do prisioneiro”. Uma situação onde, apesar dos ganhos que resultariam da cooperação entre dois actores, a opção de cada um deles leva a que não coordenem as suas acções, com consequências negativas para ambos. Um Presidente mais interventivo seria um Presidente menos popular, mas, também, um enorme obstáculo para as condições de governabilidade. O que não deixaria de ter consequências para a capacidade de enfrentarmos as tormentas que aí vêm. A atitude mais racional é, por isso, Presidente e Governo restabelecerem os termos da cooperação estratégica, agora num novo contexto. Sob pena de, enquanto redefinem os seus novos papéis, estarem, como tem acontecido a propósito do estatuto dos Açores, a juntar uma conflitualidade estéril à crise.
publicado no Diário Económico.
Os sinais de que os termos desta relação se têm alterado têm sido manifestos: desde a escolha de Alcochete para localização do novo aeroporto, passando pela eleição de Ferreira Leite, alguém muito próximo do Presidente, para líder do PSD, pondo fim a lideranças da “má moeda”, até ao mais recente episódio em torno do Estatuto dos Açores. Já neste fim-de-semana, o semanário Sol dava conta de uma eventual retaliação do Presidente através da não promulgação do orçamento de Estado.
Mas se este conjunto de episódios tem servido para colocar em causa as relações entre São Bento e Belém, no entanto, pouco nos diz sobre qual o novo papel que o Presidente irá desempenhar.
O contexto de crise alterou as regras do jogo, os termos do debate político e consequentemente o papel dos actores. A consolidação orçamental que antes era o tema dominante da agenda política e o ponto de convergência, por excelência, entre Cavaco Silva e Sócrates perdeu preponderância. Nisto, o Governo ganhou capacidade de iniciativa – detém o monopólio dos instrumentos disponíveis para responder à crise – e o Presidente ficou sem papel para representar. O que tinha anteriormente perdeu sentido e há sinais que está perante um trilema sobre qual o novo papel que vai desempenhar: ou regressa à cooperação, reforçando de novo a capacidade do Governo, agora em torno das respostas à crise; ou veste a pele de “Rainha de Inglaterra” (o que tenderia a consolidar a sua popularidade, mas seria politicamente inútil); ou assume o fim da cooperação com o Governo, desempenhando um papel que, objectivamente, ninguém está a desempenhar: o de líder da oposição.
O último barómetro do CESOP da Universidade Católica dá-nos alguns indicadores sobre o modo como os portugueses olham para o Presidente e o papel que este deveria assumir. Cavaco Silva, à imagem dos anteriores Presidentes e no que é um sintoma do síndrome “Rainha de Inglaterra”, é o actor político com níveis de avaliação mais elevados. Contudo, há na percepção do actual Presidente uma singularidade: não é visto como sendo de esquerda ou de direita, isto é, encontra-se acima das clivagens políticas. Desse ponto de vista, imagina-se, é alguém que está para além da disputa partidária – o que em Portugal, ainda que por péssimas razões, é fonte de um enorme capital político. Não por acaso, uma esmagadora maioria dos portugueses (64%), e independentemente da simpatia partidária declarada, defendem que o Presidente deveria ter um papel mais interventivo.
O mais natural é que, uma vez que Cavaco Silva assumisse uma postura mais interventiva, os seus níveis de popularidade baixassem automaticamente. Mas este desejo de maior intervencionismo não pode deixar de influenciar o Presidente e se a ele somarmos o vazio de oposição à direita, estamos perante o cenário ideal para do fim da cooperação estratégica passarmos a uma crescente oposição entre Belém e São Bento. O discurso de ano novo pode ajudar a compreender qual o papel que Cavaco Silva irá desempenhar doravante.
Não tenhamos dúvidas, um Presidente mais interventivo e um Governo em confronto com o Presidente não servirá a nenhuma das partes. Aliás, é um exemplo típico do que a “teoria dos jogos” chama de “dilema do prisioneiro”. Uma situação onde, apesar dos ganhos que resultariam da cooperação entre dois actores, a opção de cada um deles leva a que não coordenem as suas acções, com consequências negativas para ambos. Um Presidente mais interventivo seria um Presidente menos popular, mas, também, um enorme obstáculo para as condições de governabilidade. O que não deixaria de ter consequências para a capacidade de enfrentarmos as tormentas que aí vêm. A atitude mais racional é, por isso, Presidente e Governo restabelecerem os termos da cooperação estratégica, agora num novo contexto. Sob pena de, enquanto redefinem os seus novos papéis, estarem, como tem acontecido a propósito do estatuto dos Açores, a juntar uma conflitualidade estéril à crise.
publicado no Diário Económico.
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