Mudar de mais
Desde o início, a política de educação confunde-se com a identidade do executivo de Sócrates. Com uma maioria absoluta que não enfrenta pontos de veto formais, o Governo tem construído uma agenda reformista baseada na ideia de que entre interesse geral e reivindicações corporativas há uma clivagem insuperável. Para além do mais, contra o que é tradição, o calendário governamental das políticas tem-se revelado pouco solidário com o calendário partidário das eleições.
Esta atitude tem tido consequências: alterou a identidade do PS (daí a contestação permanente, sempre perto da ruptura, da sua ala mais esquerda); disseminou um discurso anti-sindical entre os governantes (que não pode deixar de diminuir a eficácia das políticas); fragilizou o encastramento social do partido (grande parte das políticas afronta os interesses da sua base eleitoral); e colocou sérias dificuldades de afirmação ao centro-direita, que vê o Governo esvaziar com eficácia a sua agenda, ao mesmo tempo que permitiu a afirmação eleitoral à esquerda.
Paradoxalmente, nenhum destes factores impediu que o Governo se mantivesse à frente das sondagens. Isto acontece por diversos motivos: a predisposição da sociedade para criar condições de governabilidade, ainda fruto de um longo período de governos minoritários ou instáveis; uma disponibilidade para aceitar sacrifícios que tem sido assinalável; e, no que é um caso típico do argumento “Nixon goes to China”, porque a capacidade política do PS para promover reformas impopulares é superior à dos partidos de centro-direita.
Este contexto tem deslocado o centro gravitacional da política do debate entre Governo e partidos para uma tensão permanente entre o Governo, como representante do interesse comum, e os movimentos de contestação de base profissional, como representantes dos interesses particulares. Não por acaso, quem tem liderado a oposição não têm sido os partidos, mas movimentos corporativos (dos militares aos camionistas, passando pelos professores). Este facto, aliás, cria uma ilusão de robustez do governo que pode não ter correspondência prática.
O que se tem passado na educação é fruto deste contexto e, ao mesmo tempo, pode funcionar como a “gota d’água” que muda as circunstâncias. A contestação dos professores pode estar para o Governo Sócrates como a contestação da ponte 25 de Abril esteve para o Governo Cavaco. Dois movimentos inorgânicos, que ultrapassam sindicatos e partidos e com interlocutores imprevisíveis. O pior dos cenários para a negociação.
O que foi feito nestes anos na política educativa não encontra paralelo em nenhum outro período da nossa democracia. Deixemos agora de lado a natureza das mudanças (com a qual tendo a concordar), mas pensemos apenas na sua dimensão (ex. fecho de escolas; novas regras de gestão; diferenciação da carreira de professores com a introdução do professor titular; aulas de substituição e prolongamento dos horários escolares; avaliação dos professores; estatuto dos alunos). Tudo num contexto de congelamento de salários e de carreiras. O que espanta não é, por isso, que a contestação seja tanta; o que surpreende é que tenha sido possível fazer tanta coisa. O que sugere que foram feitas coisas de mais, excessivamente impostas de cima para baixo e com inabilidade na sua aplicação. O que aliás tem como consequência fragilizar a consolidação de parte das mudanças.
E agora que as pontes entre Governo e professores parecem estar definitivamente postas em causa, pode Maria de Lurdes Rodrigues continuar à frente da educação?
Dois factores favorecem a sua continuidade. Por um lado, não há nada pior do que a inflexão radical da identidade dos governos. A imagem de Sócrates está intimamente ligada ao voluntarismo da ministra da Educação. Remodelar agora seria o reconhecimento de que o executivo não confiava na linha que traçou desde o início. Por outro lado, após a saída de Correia de Campos, Sócrates não pode voltar a remodelar a pedido de Manuel Alegre. Se o fizer, dá a ideia que se encontra refém do deputado contestário.
Mas contra a continuidade da ministra joga um factor difícil de ponderar: se houver um boicote de meia dúzia de conselhos executivos à avaliação, Lurdes Rodrigues pode eventualmente agir disciplinarmente. Se o boicote se generalizar, a ministra fica numa situação muito complicada. Como deixaram de existir interlocutores disponíveis do lado dos professores, o futuro imediato passou a ser imprevisível.
publicado no Diário Económico.
Esta atitude tem tido consequências: alterou a identidade do PS (daí a contestação permanente, sempre perto da ruptura, da sua ala mais esquerda); disseminou um discurso anti-sindical entre os governantes (que não pode deixar de diminuir a eficácia das políticas); fragilizou o encastramento social do partido (grande parte das políticas afronta os interesses da sua base eleitoral); e colocou sérias dificuldades de afirmação ao centro-direita, que vê o Governo esvaziar com eficácia a sua agenda, ao mesmo tempo que permitiu a afirmação eleitoral à esquerda.
Paradoxalmente, nenhum destes factores impediu que o Governo se mantivesse à frente das sondagens. Isto acontece por diversos motivos: a predisposição da sociedade para criar condições de governabilidade, ainda fruto de um longo período de governos minoritários ou instáveis; uma disponibilidade para aceitar sacrifícios que tem sido assinalável; e, no que é um caso típico do argumento “Nixon goes to China”, porque a capacidade política do PS para promover reformas impopulares é superior à dos partidos de centro-direita.
Este contexto tem deslocado o centro gravitacional da política do debate entre Governo e partidos para uma tensão permanente entre o Governo, como representante do interesse comum, e os movimentos de contestação de base profissional, como representantes dos interesses particulares. Não por acaso, quem tem liderado a oposição não têm sido os partidos, mas movimentos corporativos (dos militares aos camionistas, passando pelos professores). Este facto, aliás, cria uma ilusão de robustez do governo que pode não ter correspondência prática.
O que se tem passado na educação é fruto deste contexto e, ao mesmo tempo, pode funcionar como a “gota d’água” que muda as circunstâncias. A contestação dos professores pode estar para o Governo Sócrates como a contestação da ponte 25 de Abril esteve para o Governo Cavaco. Dois movimentos inorgânicos, que ultrapassam sindicatos e partidos e com interlocutores imprevisíveis. O pior dos cenários para a negociação.
O que foi feito nestes anos na política educativa não encontra paralelo em nenhum outro período da nossa democracia. Deixemos agora de lado a natureza das mudanças (com a qual tendo a concordar), mas pensemos apenas na sua dimensão (ex. fecho de escolas; novas regras de gestão; diferenciação da carreira de professores com a introdução do professor titular; aulas de substituição e prolongamento dos horários escolares; avaliação dos professores; estatuto dos alunos). Tudo num contexto de congelamento de salários e de carreiras. O que espanta não é, por isso, que a contestação seja tanta; o que surpreende é que tenha sido possível fazer tanta coisa. O que sugere que foram feitas coisas de mais, excessivamente impostas de cima para baixo e com inabilidade na sua aplicação. O que aliás tem como consequência fragilizar a consolidação de parte das mudanças.
E agora que as pontes entre Governo e professores parecem estar definitivamente postas em causa, pode Maria de Lurdes Rodrigues continuar à frente da educação?
Dois factores favorecem a sua continuidade. Por um lado, não há nada pior do que a inflexão radical da identidade dos governos. A imagem de Sócrates está intimamente ligada ao voluntarismo da ministra da Educação. Remodelar agora seria o reconhecimento de que o executivo não confiava na linha que traçou desde o início. Por outro lado, após a saída de Correia de Campos, Sócrates não pode voltar a remodelar a pedido de Manuel Alegre. Se o fizer, dá a ideia que se encontra refém do deputado contestário.
Mas contra a continuidade da ministra joga um factor difícil de ponderar: se houver um boicote de meia dúzia de conselhos executivos à avaliação, Lurdes Rodrigues pode eventualmente agir disciplinarmente. Se o boicote se generalizar, a ministra fica numa situação muito complicada. Como deixaram de existir interlocutores disponíveis do lado dos professores, o futuro imediato passou a ser imprevisível.
publicado no Diário Económico.
<< Home