Lisboagate ou Democraciagate?
“Património disperso da Câmara”, assim se chama o conjunto de habitações camarárias que vive num limbo há mais de trinta anos. De acordo com o que se tem percebido, ao contrário do que acontece com a habitação social, não há qualquer critério para atribuição do que se estima serem 4000 fogos. A consequência desta ausência de critérios começa a ser demasiado conhecida: distribuição arbitrária de casas da Câmara beneficiando famílias carenciadas, funcionários e dirigentes da autarquia, vereadores, jornalistas, artistas. Indiscriminadamente e sempre com “rendas técnicas” que têm um valor bem abaixo do mercado.
Este quadro, escondido há décadas nos corredores dos Paços do Concelho, tem gerado grande perplexidade. Não é motivo para menos. Mas, convenhamos, também não nos devemos deixar surpreender com isso. Afinal, e por péssimos motivos, a atribuição discricionária de benesses por parte dos poderes públicos faz parte, para usar a expressão reveladora do vereador Pedro Feist, da “realidade histórica” do País. Paradoxalmente, essa discricionariedade é o frágil cimento em que assenta a nossa democracia. Ao mesmo tempo que dá poder a quem distribui (no caso, o vereador), torna esse poder legítimo aos olhos de quem recebe, assegurando também a existência de clientelas eleitorais. Se as coisas não se passassem assim, o mais provável era que os eleitores se sentissem frustrados perante a incapacidade “política” dos eleitos.
Ainda que as notícias sobre o que se passa na Câmara de Lisboa provoquem uma justa indignação, a verdade é que os sucessivos poderes autárquicos limitam-se a satisfazer as expectativas dos eleitores. Os “cidadãos” esperam que o poder político resolva os seus problemas particulares e intercedem directamente para que isso aconteça. A cunha e o favor são autênticos facilitadores do bom funcionamento do sistema. O problema é que a cunha e o favor têm inscritos em si o declínio do próprio sistema.
Há, desde logo, duas consequências deste modo de funcionamento.
A primeira tem a ver com o modo como a inexistência de regras gerais e abstractas na atribuição de um bem que é público gera e reproduz desigualdades. Para além dos casos extremos em que os beneficiados estão longe de estar em situação de necessidade (e as notícias de casas para vereadores e dirigentes de empresas municipais são, no mínimo, aberrantes), mesmo quando o que está em causa é a atribuição de casas a desfavorecidos, a discricionariedade é inimiga da equidade. A distribuição arbitrária de casas limita-se a beneficiar as famílias carenciadas que conseguem estabelecer uma relação de proximidade com o poder e não necessariamente aquelas que mais precisam.
A segunda prende-se com a descredibilização do exercício do poder democrático. Uma relação entre eleitos e eleitores baseada na troca e na satisfação do interesse particular contradiz a lógica democrática, que deve ser fundada na representação e na defesa do interesse geral e aproxima-se dramaticamente do patrocinato.
A este propósito vale a pena regressar a um livro publicado, em plena operação “mãos limpas”, pelo politólogo norte-americano Robert Putnam, “Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy”. A partir da análise dos governos regionais italianos desde a década de 70, Putnam concluía que a boa performance institucional e a qualidade da democracia dependia menos da modernização económica e mais da existência de um “capital social” que, em última análise, torna a democracia viável. Era essa a diferença entre o norte de Itália, com tradições cívicas mais encastradas, e o sul em que o ‘capital social’ era mais fraco, quando não inexistente.
O mais provável é que a passividade com que a distribuição discricionária de casas em Lisboa foi sendo aceite ao longo de décadas, por todas as cores políticas, seja fruto do fraquíssimo “capital social” em que assenta a democracia portuguesa. Um problema que, aliás, tende a não ser resolúvel, como mostra a persistência em Itália de grande parte dos problemas preexistentes. Mas, perante a passividade a que temos assistido do poder político em relação ao Lisboagate, torna-se objectivamente muito difícil fazer um discurso pedagógico em defesa da democracia ou dos partidos portugueses. A única esperança é que actores políticos responsáveis usem casos como este para colocarem termo ao quadro de falta de transparência e impunidade em que, frequentemente, se têm movido. Caso contrário, o mais certo é o Lisboagate transformar-se num Democraciagate.
publicado no Diário Económico.
Este quadro, escondido há décadas nos corredores dos Paços do Concelho, tem gerado grande perplexidade. Não é motivo para menos. Mas, convenhamos, também não nos devemos deixar surpreender com isso. Afinal, e por péssimos motivos, a atribuição discricionária de benesses por parte dos poderes públicos faz parte, para usar a expressão reveladora do vereador Pedro Feist, da “realidade histórica” do País. Paradoxalmente, essa discricionariedade é o frágil cimento em que assenta a nossa democracia. Ao mesmo tempo que dá poder a quem distribui (no caso, o vereador), torna esse poder legítimo aos olhos de quem recebe, assegurando também a existência de clientelas eleitorais. Se as coisas não se passassem assim, o mais provável era que os eleitores se sentissem frustrados perante a incapacidade “política” dos eleitos.
Ainda que as notícias sobre o que se passa na Câmara de Lisboa provoquem uma justa indignação, a verdade é que os sucessivos poderes autárquicos limitam-se a satisfazer as expectativas dos eleitores. Os “cidadãos” esperam que o poder político resolva os seus problemas particulares e intercedem directamente para que isso aconteça. A cunha e o favor são autênticos facilitadores do bom funcionamento do sistema. O problema é que a cunha e o favor têm inscritos em si o declínio do próprio sistema.
Há, desde logo, duas consequências deste modo de funcionamento.
A primeira tem a ver com o modo como a inexistência de regras gerais e abstractas na atribuição de um bem que é público gera e reproduz desigualdades. Para além dos casos extremos em que os beneficiados estão longe de estar em situação de necessidade (e as notícias de casas para vereadores e dirigentes de empresas municipais são, no mínimo, aberrantes), mesmo quando o que está em causa é a atribuição de casas a desfavorecidos, a discricionariedade é inimiga da equidade. A distribuição arbitrária de casas limita-se a beneficiar as famílias carenciadas que conseguem estabelecer uma relação de proximidade com o poder e não necessariamente aquelas que mais precisam.
A segunda prende-se com a descredibilização do exercício do poder democrático. Uma relação entre eleitos e eleitores baseada na troca e na satisfação do interesse particular contradiz a lógica democrática, que deve ser fundada na representação e na defesa do interesse geral e aproxima-se dramaticamente do patrocinato.
A este propósito vale a pena regressar a um livro publicado, em plena operação “mãos limpas”, pelo politólogo norte-americano Robert Putnam, “Making Democracy Work: Civic Traditions in Modern Italy”. A partir da análise dos governos regionais italianos desde a década de 70, Putnam concluía que a boa performance institucional e a qualidade da democracia dependia menos da modernização económica e mais da existência de um “capital social” que, em última análise, torna a democracia viável. Era essa a diferença entre o norte de Itália, com tradições cívicas mais encastradas, e o sul em que o ‘capital social’ era mais fraco, quando não inexistente.
O mais provável é que a passividade com que a distribuição discricionária de casas em Lisboa foi sendo aceite ao longo de décadas, por todas as cores políticas, seja fruto do fraquíssimo “capital social” em que assenta a democracia portuguesa. Um problema que, aliás, tende a não ser resolúvel, como mostra a persistência em Itália de grande parte dos problemas preexistentes. Mas, perante a passividade a que temos assistido do poder político em relação ao Lisboagate, torna-se objectivamente muito difícil fazer um discurso pedagógico em defesa da democracia ou dos partidos portugueses. A única esperança é que actores políticos responsáveis usem casos como este para colocarem termo ao quadro de falta de transparência e impunidade em que, frequentemente, se têm movido. Caso contrário, o mais certo é o Lisboagate transformar-se num Democraciagate.
publicado no Diário Económico.
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