A auto-regeneração dos media
A sentença que considerou a prisão preventiva de Paulo Pedroso um “erro grosseiro” do Juiz de Instrução Rui Teixeira é, naturalmente, um virar de página para alguém que viu a sua vida pessoal, familiar, profissional e política destruída ao longo destes cinco anos. Ainda que nenhuma decisão judicial, muito menos qualquer compensação material, possa ressarcir os danos sofridos, esta sentença, até porque confirma muitas outras anteriores relativas às acusações, é, ainda assim, reveladora de alguma capacidade auto-regeneradora da justiça. É verdade que o que se passou com Paulo Pedroso não é, de modo algum, compaginável nem com um Estado de Direito, nem com uma sociedade decente, mas esta sentença mostra que o sistema de justiça, de modo autónomo, é capaz de contrariar decisões grosseiras anteriores.
Uma coisa é o que a justiça se mostra capaz de fazer, outra é o que os media fazem com a informação de processos judiciais. A relação entre justiça e comunicação social não é simples, nem os problemas a ela associados fáceis de ultrapassar. Desde logo porque o tempo da justiça é lento e não definitivo, enquanto o dos media é imediato e categórico. A consequência é que alguém que se veja envolvido num processo judicial, mesmo que depois seja cabalmente absolvido, se vir o seu nome nas mãos mediáticas, encontra-se condenado para sempre. No dilema entre a informação sobre o que se passa na justiça e o direito à presunção da inocência e ao bom nome de qualquer cidadão, a escolha de uma sociedade decente não deveria ser difícil de tomar. Mas aparentemente é; e o que impera é o vale tudo de alguns media, para quem a escolha entre a competição populista e o respeito pelos indivíduos nunca chega sequer a ser equacionada.
Provavelmente nenhum destes problemas terá resolução numa sociedade democrática, mas talvez alguma dose de responsabilidade da parte dos media e dos jornalistas, combinada com mecanismos eficazes de auto-regulação, ajudasse.
A este propósito, há bons exemplos que chegam de fora, como os relacionados com o mais mediático dos casos judiciais ocorridos em Portugal. Robert Murat, o cidadão inglês que viu o seu nome envolvido no desaparecimento de “Maddie” e foi constituído arguido porque uma jornalista achou que ele tinha “um comportamento estranho” (sic), recebeu uma indemnização de 750 mil euros de alguns órgãos de comunicação social britânicos, que o tinham tratado como culpado e promovido um linchamento tablóide na praça pública. Indemnização esta que não resultou de nenhum processo judicial, mas antes de uma decisão dos próprios órgãos de comunicação social (eventualmente porque estavam conscientes que seriam duramente condenados em tribunal). Esta semana, na entrevista que deram ao “Expresso”, também os McCann revelam ter recebido 680 mil euros de uma indemnização dos media.
Em Portugal, a partir de informações judiciais falsas, não confirmadas ou delirantes, há invariavelmente órgãos de comunicação que não hesitam em promover julgamentos populares e linchamentos de carácter. Talvez não fosse má ideia que aproveitassem agora a oportunidade para fazerem um exame de consciência e revelarem uma capacidade de auto-regeneração pelo menos igual à que o sistema judicial demonstrou. Aliás, o mais importante não seria necessariamente o ressarcimento material, mas, sim, um reconhecimento dos erros cometidos e das suas consequências.
Um Estado de Direito depende em absoluto de um sistema de justiça fiável, idóneo, resistente às pressões populares e com mecanismos de controlo internos sólidos, mas uma sociedade decente precisa que a comunicação social também preencha todos estes requisitos. Como lembrava Montesquieu no “Espírito das Leis”, “a experiência mostra-nos que qualquer homem a quem tenha sido conferido poder abusará dele e usará a sua autoridade até onde lhe é possível”. A experiência mostra-nos também que os media podem fazer exactamente o mesmo, colocando irremediavelmente em causa a separação de poderes, logo o funcionamento das democracias. Cabe quase exclusivamente aos próprios media contrariar esta tendência.
publicado no Diário Económico.
Uma coisa é o que a justiça se mostra capaz de fazer, outra é o que os media fazem com a informação de processos judiciais. A relação entre justiça e comunicação social não é simples, nem os problemas a ela associados fáceis de ultrapassar. Desde logo porque o tempo da justiça é lento e não definitivo, enquanto o dos media é imediato e categórico. A consequência é que alguém que se veja envolvido num processo judicial, mesmo que depois seja cabalmente absolvido, se vir o seu nome nas mãos mediáticas, encontra-se condenado para sempre. No dilema entre a informação sobre o que se passa na justiça e o direito à presunção da inocência e ao bom nome de qualquer cidadão, a escolha de uma sociedade decente não deveria ser difícil de tomar. Mas aparentemente é; e o que impera é o vale tudo de alguns media, para quem a escolha entre a competição populista e o respeito pelos indivíduos nunca chega sequer a ser equacionada.
Provavelmente nenhum destes problemas terá resolução numa sociedade democrática, mas talvez alguma dose de responsabilidade da parte dos media e dos jornalistas, combinada com mecanismos eficazes de auto-regulação, ajudasse.
A este propósito, há bons exemplos que chegam de fora, como os relacionados com o mais mediático dos casos judiciais ocorridos em Portugal. Robert Murat, o cidadão inglês que viu o seu nome envolvido no desaparecimento de “Maddie” e foi constituído arguido porque uma jornalista achou que ele tinha “um comportamento estranho” (sic), recebeu uma indemnização de 750 mil euros de alguns órgãos de comunicação social britânicos, que o tinham tratado como culpado e promovido um linchamento tablóide na praça pública. Indemnização esta que não resultou de nenhum processo judicial, mas antes de uma decisão dos próprios órgãos de comunicação social (eventualmente porque estavam conscientes que seriam duramente condenados em tribunal). Esta semana, na entrevista que deram ao “Expresso”, também os McCann revelam ter recebido 680 mil euros de uma indemnização dos media.
Em Portugal, a partir de informações judiciais falsas, não confirmadas ou delirantes, há invariavelmente órgãos de comunicação que não hesitam em promover julgamentos populares e linchamentos de carácter. Talvez não fosse má ideia que aproveitassem agora a oportunidade para fazerem um exame de consciência e revelarem uma capacidade de auto-regeneração pelo menos igual à que o sistema judicial demonstrou. Aliás, o mais importante não seria necessariamente o ressarcimento material, mas, sim, um reconhecimento dos erros cometidos e das suas consequências.
Um Estado de Direito depende em absoluto de um sistema de justiça fiável, idóneo, resistente às pressões populares e com mecanismos de controlo internos sólidos, mas uma sociedade decente precisa que a comunicação social também preencha todos estes requisitos. Como lembrava Montesquieu no “Espírito das Leis”, “a experiência mostra-nos que qualquer homem a quem tenha sido conferido poder abusará dele e usará a sua autoridade até onde lhe é possível”. A experiência mostra-nos também que os media podem fazer exactamente o mesmo, colocando irremediavelmente em causa a separação de poderes, logo o funcionamento das democracias. Cabe quase exclusivamente aos próprios media contrariar esta tendência.
publicado no Diário Económico.
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