"Chame o ladrão"
Numa das suas mais conhecidas canções de intervenção, "Acorda amor", Chico Buarque, perante a eminência de uma prisão política, aconselhava a que se chamasse o ladrão. Bem sei que o contexto era outro, uma ditadura militar brutal, mas perante o que se foi sabendo do caso Maddie, para que nos possamos sentir seguros, também entre nós, cada vez parece mais aconselhável "chamar o ladrão".
A semana passada, com a notícia do possível arquivamento do processo Maddie, assistiu-se a mais uma erupção de notícias que expuseram a fragilidade do Estado de direito em Portugal. Aliás, perante o que se lê, há desde logo uma questão que fica: sendo o caso Maddie a mais internacional e mediática investigação ocorrida em Portugal, quantas situações idênticas não existirão, com os mesmos erros e com as mesmas fragilidades, mas que passam à margem do escrutínio público?
Talvez seja fruto da impreparação para lidar com a comunicação social, mas a verdade é que nos processos muito mediáticos, enquanto a investigação vai decorrendo, vai sendo feita uma gestão perversa da informação que é libertada. Invariavelmente através de fontes mais ou menos próximas, alguns órgãos de comunicação vão divulgando um conjunto de "provas" a que tiveram acesso exclusivo. Independentemente da veracidade dos factos, o resultado procurado é dar uma aparência de solidez à investigação. Mas não se fica por aí, frequentemente o objectivo é o de procurar tornar verosímil o que, à partida, parecia improvável. O jornalismo tablóide cumpre depois a sua função: revela uma assinalável capacidade de mudar narrativas e através de julgamentos populares dita sentenças definitivas.
Todo este processo é naturalmente condimentado por um discurso populista sobre os poderosos. No caso Maddie, aliás, há inclusive quem não hesite em responsabilizar o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, pelos problemas da investigação. Uma hipótese aparentemente delirante, mas que adere à realidade de hoje, onde, até prova em contrário, sobre os políticos paira um espectro de culpa. Perante a fragilidade da investigação, nada como responsabilizar os políticos. Como afirmou o ex-responsável pela investigação ao Expresso: "este caso foi mais político do que policial". Ou seja, a investigação revela-se inconclusiva – o que é absolutamente normal num caso destes – e logo se opta por uma teia conspirativa tecida pelos políticos. No caso em apreço, uma teia global.
Depois as acusações feitas de modo mais ou menos dissimulado na praça pública tendem a assentar em convicções e não em factos. Eu não sei o que se passou na noite de 3 de Maio de 2007, mas não quero saber rigorosamente nada a menos que se baseie em factos sólidos, passíveis de serem provados em Tribunal. O que se espera de uma investigação num Estado de direito é que guarde para si as convicções e que se limite a apresentar provas. Ora, como a sucessão de declarações de vários ex-inspectores da Judiciária se tem encarregado de demonstrar, não há qualquer pudor em fazer acusações na praça pública baseadas essencialmente em convicções. Acontece que esta é claramente uma situação em que, não sendo possível provar factualmente a culpa, há uma obrigação clara, a de se calarem para sempre. Em nome de um princípio basilar das democracias, a presunção da inocência.
Naturalmente que há um juízo de valor que pode ser feito perante todo este processo: nunca saberemos shttp://www.blogger.com/img/gl.link.gife é mais horrível esta http://www.blogger.com/img/gl.link.giffamília, sendo inocente, estar a passar por tudo isto ou, pelo contrário, serem culpados. Contudo, independentemente destes juízos, neste processo joga-se também a credibilidade do Estado de direito em Portugal. Para que todos nos possamos sentir seguros perante a lei e para que tenhamos nesta um último reduto da defesa das liberdades, é fundamental que a justiça se baseie em provas e que se escuse de emitir opiniões. O que o caso Maddie revela é que perante a incapacidade de produzir prova ou face à fragilidade da mesma, a opção seguida é a de intoxicar a comunicação social com pseudo-evidências e, ainda hoje, não hesitar em proferir acusações em público baseadas em convicções pessoais.
Perante um cenário destes, apetece mesmo dizer que com a policia lá fora, para nos sentirmos seguros, o melhor mesmo é "chamar o ladrão". Ou então esperar que, pelo seu impacto mediático, este caso ajude a mudar as práticas da investigação policial em Portugal.
publicado no Diário Económico.
A semana passada, com a notícia do possível arquivamento do processo Maddie, assistiu-se a mais uma erupção de notícias que expuseram a fragilidade do Estado de direito em Portugal. Aliás, perante o que se lê, há desde logo uma questão que fica: sendo o caso Maddie a mais internacional e mediática investigação ocorrida em Portugal, quantas situações idênticas não existirão, com os mesmos erros e com as mesmas fragilidades, mas que passam à margem do escrutínio público?
Talvez seja fruto da impreparação para lidar com a comunicação social, mas a verdade é que nos processos muito mediáticos, enquanto a investigação vai decorrendo, vai sendo feita uma gestão perversa da informação que é libertada. Invariavelmente através de fontes mais ou menos próximas, alguns órgãos de comunicação vão divulgando um conjunto de "provas" a que tiveram acesso exclusivo. Independentemente da veracidade dos factos, o resultado procurado é dar uma aparência de solidez à investigação. Mas não se fica por aí, frequentemente o objectivo é o de procurar tornar verosímil o que, à partida, parecia improvável. O jornalismo tablóide cumpre depois a sua função: revela uma assinalável capacidade de mudar narrativas e através de julgamentos populares dita sentenças definitivas.
Todo este processo é naturalmente condimentado por um discurso populista sobre os poderosos. No caso Maddie, aliás, há inclusive quem não hesite em responsabilizar o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, pelos problemas da investigação. Uma hipótese aparentemente delirante, mas que adere à realidade de hoje, onde, até prova em contrário, sobre os políticos paira um espectro de culpa. Perante a fragilidade da investigação, nada como responsabilizar os políticos. Como afirmou o ex-responsável pela investigação ao Expresso: "este caso foi mais político do que policial". Ou seja, a investigação revela-se inconclusiva – o que é absolutamente normal num caso destes – e logo se opta por uma teia conspirativa tecida pelos políticos. No caso em apreço, uma teia global.
Depois as acusações feitas de modo mais ou menos dissimulado na praça pública tendem a assentar em convicções e não em factos. Eu não sei o que se passou na noite de 3 de Maio de 2007, mas não quero saber rigorosamente nada a menos que se baseie em factos sólidos, passíveis de serem provados em Tribunal. O que se espera de uma investigação num Estado de direito é que guarde para si as convicções e que se limite a apresentar provas. Ora, como a sucessão de declarações de vários ex-inspectores da Judiciária se tem encarregado de demonstrar, não há qualquer pudor em fazer acusações na praça pública baseadas essencialmente em convicções. Acontece que esta é claramente uma situação em que, não sendo possível provar factualmente a culpa, há uma obrigação clara, a de se calarem para sempre. Em nome de um princípio basilar das democracias, a presunção da inocência.
Naturalmente que há um juízo de valor que pode ser feito perante todo este processo: nunca saberemos shttp://www.blogger.com/img/gl.link.gife é mais horrível esta http://www.blogger.com/img/gl.link.giffamília, sendo inocente, estar a passar por tudo isto ou, pelo contrário, serem culpados. Contudo, independentemente destes juízos, neste processo joga-se também a credibilidade do Estado de direito em Portugal. Para que todos nos possamos sentir seguros perante a lei e para que tenhamos nesta um último reduto da defesa das liberdades, é fundamental que a justiça se baseie em provas e que se escuse de emitir opiniões. O que o caso Maddie revela é que perante a incapacidade de produzir prova ou face à fragilidade da mesma, a opção seguida é a de intoxicar a comunicação social com pseudo-evidências e, ainda hoje, não hesitar em proferir acusações em público baseadas em convicções pessoais.
Perante um cenário destes, apetece mesmo dizer que com a policia lá fora, para nos sentirmos seguros, o melhor mesmo é "chamar o ladrão". Ou então esperar que, pelo seu impacto mediático, este caso ajude a mudar as práticas da investigação policial em Portugal.
publicado no Diário Económico.
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