terça-feira, julho 01, 2008

Adaptabilidade e coesão

Há em Portugal uma tradição para olhar para exemplos estrangeiros quando se discute a modernização da nossa economia. Os casos mobilizados é que vão mudando ao longo do tempo e consoante as preferências políticas: quem prefere a competitividade fiscal, aponta para a Irlanda ou até para as experiências de ‘flat-rate’ dos países do alargamento; aqueles que pensam que o caminho é a activação do mercado de trabalho, elogiam a flexigurança dinamarquesa; os que defendem a alteração do padrão de especialização, sugerem que devemos emular a Finlândia. O problema é que enquanto olhamos para paradigmas de sucesso esquecemos, por um lado, que a transferência de soluções quando é cega às especificidades nacionais é má conselheira e, por outro, que todos os processos de mudança consequentes assentaram em pactos sociais e numa forte propensão para a negociação da parte dos parceiros sociais. Duas características fracamente presentes em Portugal.

O acordo tripartido alcançado em torno da revisão do código do trabalho é uma boa notícia. A revisão da legislação laboral não é a solução para todas as dificuldades que enfrenta a economia portuguesa. Mas se for um contributo para promover uma cultura negocial aos vários níveis pode ser um auxiliar poderoso. Se a existência de um acordo na concertação social deve ser vista como algo de positivo por si só, a solução negociada aponta caminhos que, além do mais, ultrapassam alguns dos bloqueios negociais do passado.

Enquanto há cinco anos a discussão se centrou excessivamente na flexibilidade externa (i.e., a possibilidade de facilitar o despedimento), desta feita o tema não esteve no centro da agenda. Esta opção teve várias vantagens: diminuiu a conflitualidade política, possibilitou que a discussão ultrapassasse querelas estéreis e marcadas pelo fetichismo ideológico e, acima de tudo, recentrou a discussão nas dimensões em que o contributo da legislação laboral para a competitividade da economia e para a coesão social é, de facto, relevante.

O principal mecanismo de rigidez do mercado de trabalho português não é a rigidez externa, mas sim a pouca flexibilidade interna, quer considerando a organização do tempo de trabalho, quer o seu conteúdo funcional. A impossibilidade das empresas fazerem uma gestão mais flexível dos horários de trabalho é, aliás, um aspecto distintivo de Portugal – 78% dos trabalhadores portugueses têm horários fixos de entrada e saída, para uma média da UE-25 de 64%.

A solução negociada procura responder ao défice de adaptabilidade. Mantendo os limites de tempo de trabalho nas 40 horas, abre, contudo, a possibilidade de flexibilização dos mesmos, designadamente através da criação de “bancos de horas” (i.e., horários que concentram o trabalho em alguns dias da semana). Contudo, em lugar de impor, remete esta prerrogativa para a contratação colectiva ou para acordos de empresa. Esta flexibilização, como aliás demonstra à saciedade o exemplo de sucesso da AutoEuropa, pode fazer mais pela competitividade das empresas e pela garantia do emprego do que a liberalização, mais ou menos mitigada, do despedimento.

Mas a legislação laboral não é apenas um mecanismo para a promoção da competitividade, é também um poderoso instrumento de regulação social e de igualitarização de relações assimétricas (entre empregador e trabalhador). O acordo não só não descarta a responsabilidade na promoção da coesão social, como procura contrariar o excesso de segmentação que caracteriza o mercado de trabalho português. Convém não esquecer que, em Portugal, há cerca de 3 milhões de contratos sem termo para cerca de 700 mil com termo. A estes há que somar outra das especificidades nacionais, o número muito significativo de independentes.

Neste contexto, as respostas acordadas para o combate à precariedade, designadamente a diferenciação das taxas contributivas para a segurança social consoante o tipo de vínculo, bem como os incentivos à transformação de trabalho precário em contrato sem termo, são exemplos positivos do que o Estado ainda pode fazer para acomodar a segmentação.

No fim, é natural que nenhuma das partes se reveja inteiramente na solução acordada, o que deve servir para lembrar que o diálogo social é um instrumento eficiente de promoção da mudança quando consegue combinar flexibilidade negocial com capacidade de discutir mais as variáveis que são de facto relevantes e menos aquelas que são fundamentais para “provas de vida” ideológicas mas que, também por isso, tendem a bloquear as negociações.

publicado no Diário Económico.