O directo da morte
Temos assistido a uma assinalável unanimidade em torno da intervenção eficaz dos GOE no assalto à dependência do BES. As razões não são para menos: quando vários corpos policiais têm dado sinais de fragilidade e quando os sentimentos de insegurança progridem, o profissionalismo dos GOE funcionou em contra-tendência. Mas uma coisa é o reconhecimento justo da actuação dos GOE, outra, bem diferente, é o regozijo colectivo a que temos assistido relativamente ao que se passou na quinta-feira em Campolide.
Morreu um sequestrador e outro ficou ferido com gravidade, sendo que, no que era o mais importante, os reféns, que foram expostos a enorme violência, saíram ilesos. Este foi, a partir de certa altura, o desfecho inevitável do assalto, mas é um desfecho que está longe de ser o desejável. Naturalmente que os principais responsáveis pelo modo como o assalto acabou foram os dois sequestradores. O que não impede que o desejável fosse que os negociadores tivessem conseguido a sua rendição, sendo estes presentes a um juiz. A satisfação a que temos assistido perante o tiro certeiro dos ‘snipers’, uma espécie de justiça na hora, é mais um sinal de como o Estado de direito é uma conquista tão frágil entre nós.
Também o modo como colectivamente aceitamos a morte como desenlace de um assalto a um banco coloca em causa um importante património civilizacional. Uma das fronteiras entre barbárie e civilização é precisamente aquela que concede uma superioridade absoluta ao valor da vida humana, em qualquer circunstância. Se cedemos neste princípio, podemos estar irremediavelmente a trocar uma sociedade decente, baseada no humanismo e na liberdade, por uma ilusão de segurança assente no livre-arbítrio e numa espiral de violência. A aceitação tácita da bondade do desfecho do assalto ao BES só pode ser vista como um sinal de retrocesso nos padrões morais da nossa vida colectiva.
Mas se a intervenção policial levanta questões morais importantes sobre o papel da justiça nas sociedades democráticas e sobre o modo como, nestas, o Estado exerce o monopólio da violência legítima, a forma como os meios de comunicação lidaram com o sequestro coloca outras questões, igualmente fundamentais.
Ao longo de várias horas as televisões fizeram directos desde Campolide. A opção editorial foi absolutamente legítima, o mesmo já não pode ser dito da forma como se mostrou o sequestro. As imagens da porta do banco, com os sequestradores de arma apontada aos reféns, seguidas do tiroteio, foram um prato adequado ao “voyeurismo” televisivo; mas foram também uma exposição gratuita de violência, assente num hiper-realismo que tende a confundir a realidade com um video-game em que vida e morte são categorias igualmente banais. Aliás, basta imaginarmos um cenário alternativo em que a intervenção dos GOE não corria bem e no qual, em lugar da “neutralização” dos sequestradores, tínhamos assistido a um banho de sangue com morte dos reféns, para nos apercebermos de quão perigosos foram aqueles directos. E o que dizer das horas de tensão a que foram sujeitos os familiares e amigos dos reféns, expostos àquelas imagens dramáticas? Será legítimo, em nome de dois ou três pontos percentuais na guerra das audiometrias, oferecer um espectáculo de violência como aquele?
Dir-se-á que aquela violência foi uma consequência do directo que, pela sua natureza, não pudemos antecipar. Não é verdade. Aquele não era um directo imprevisível, como aconteceu, por exemplo, no outro e único caso de morte em directo de que me recordo na televisão portuguesa, o de Miki Feher. Aliás, quando o jogador do Benfica morreu em pleno campo, não só não era previsível que tal viesse a acontecer, como o realizador da partida de futebol, num gesto que na altura foi justamente elogiado, mandou afastar as câmaras da cara do jogador. Tudo ao contrário do que agora se passou. Não apenas na quinta-feira era muito provável que houvesse violência, como todas as televisões não se inibiram de dar os planos mais próximos possíveis dos acontecimentos.
Num mundo desejável, os mecanismos de auto-regulação teriam funcionado e, em lugar do valor absoluto das guerras de audiências, as televisões ter-se-iam entendido para não mostrar em directo aquelas imagens terríveis e os seus possíveis desfechos. Mas, como este exemplo mais uma vez demonstra, a auto-regulação da comunicação social é hoje pouco mais do que um embuste mobilizado para a argumentação de cada vez que alguém ousa regulamentar a sua acção. Já os directos da morte são apenas uma versão extrema dos caminhos percorridos pelos media.
publicado no Diário Económico.
Morreu um sequestrador e outro ficou ferido com gravidade, sendo que, no que era o mais importante, os reféns, que foram expostos a enorme violência, saíram ilesos. Este foi, a partir de certa altura, o desfecho inevitável do assalto, mas é um desfecho que está longe de ser o desejável. Naturalmente que os principais responsáveis pelo modo como o assalto acabou foram os dois sequestradores. O que não impede que o desejável fosse que os negociadores tivessem conseguido a sua rendição, sendo estes presentes a um juiz. A satisfação a que temos assistido perante o tiro certeiro dos ‘snipers’, uma espécie de justiça na hora, é mais um sinal de como o Estado de direito é uma conquista tão frágil entre nós.
Também o modo como colectivamente aceitamos a morte como desenlace de um assalto a um banco coloca em causa um importante património civilizacional. Uma das fronteiras entre barbárie e civilização é precisamente aquela que concede uma superioridade absoluta ao valor da vida humana, em qualquer circunstância. Se cedemos neste princípio, podemos estar irremediavelmente a trocar uma sociedade decente, baseada no humanismo e na liberdade, por uma ilusão de segurança assente no livre-arbítrio e numa espiral de violência. A aceitação tácita da bondade do desfecho do assalto ao BES só pode ser vista como um sinal de retrocesso nos padrões morais da nossa vida colectiva.
Mas se a intervenção policial levanta questões morais importantes sobre o papel da justiça nas sociedades democráticas e sobre o modo como, nestas, o Estado exerce o monopólio da violência legítima, a forma como os meios de comunicação lidaram com o sequestro coloca outras questões, igualmente fundamentais.
Ao longo de várias horas as televisões fizeram directos desde Campolide. A opção editorial foi absolutamente legítima, o mesmo já não pode ser dito da forma como se mostrou o sequestro. As imagens da porta do banco, com os sequestradores de arma apontada aos reféns, seguidas do tiroteio, foram um prato adequado ao “voyeurismo” televisivo; mas foram também uma exposição gratuita de violência, assente num hiper-realismo que tende a confundir a realidade com um video-game em que vida e morte são categorias igualmente banais. Aliás, basta imaginarmos um cenário alternativo em que a intervenção dos GOE não corria bem e no qual, em lugar da “neutralização” dos sequestradores, tínhamos assistido a um banho de sangue com morte dos reféns, para nos apercebermos de quão perigosos foram aqueles directos. E o que dizer das horas de tensão a que foram sujeitos os familiares e amigos dos reféns, expostos àquelas imagens dramáticas? Será legítimo, em nome de dois ou três pontos percentuais na guerra das audiometrias, oferecer um espectáculo de violência como aquele?
Dir-se-á que aquela violência foi uma consequência do directo que, pela sua natureza, não pudemos antecipar. Não é verdade. Aquele não era um directo imprevisível, como aconteceu, por exemplo, no outro e único caso de morte em directo de que me recordo na televisão portuguesa, o de Miki Feher. Aliás, quando o jogador do Benfica morreu em pleno campo, não só não era previsível que tal viesse a acontecer, como o realizador da partida de futebol, num gesto que na altura foi justamente elogiado, mandou afastar as câmaras da cara do jogador. Tudo ao contrário do que agora se passou. Não apenas na quinta-feira era muito provável que houvesse violência, como todas as televisões não se inibiram de dar os planos mais próximos possíveis dos acontecimentos.
Num mundo desejável, os mecanismos de auto-regulação teriam funcionado e, em lugar do valor absoluto das guerras de audiências, as televisões ter-se-iam entendido para não mostrar em directo aquelas imagens terríveis e os seus possíveis desfechos. Mas, como este exemplo mais uma vez demonstra, a auto-regulação da comunicação social é hoje pouco mais do que um embuste mobilizado para a argumentação de cada vez que alguém ousa regulamentar a sua acção. Já os directos da morte são apenas uma versão extrema dos caminhos percorridos pelos media.
publicado no Diário Económico.
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