terça-feira, julho 22, 2008

Um jogo de culpas

Depois do bloqueio dos camionistas, das manifestações da CGTP, da subida do petróleo e das taxas de juro e da eleição de uma nova liderança no PSD, não deixa de ser surpreendente que o PS continue, de acordo com a sondagem do CESOP da Universidade Católica, a liderar as intenções de voto. Tendo em conta a percepção de que o “estado de graça” do actual executivo terá terminado, como explicar esta situação?

Recorrendo aos resultados da Católica é possível encontrar algumas explicações. Desde logo, 54% dos inquiridos consideram que nenhum partido faria melhor do que o actual governo. Aliás, 40% dos inquiridos pensam que o PS voltará a ganhar as eleições, um valor que aumentou face ao barómetro anterior (37%), ao mesmo tempo que os resultados do PSD diminuíram (de 33% para 31%). Mesmo enfrentando um significativo descontentamento popular, o PS continua a ser o escolhido para governar e o PSD (ainda) não é visto como alternativa.

Na política, a gramática conta muito. Quem domina os seus termos, tende a dominar a agenda e a liderar politicamente. E a verdade é que este ciclo político tem sido dominado por uma gramática construída pelo PS de José Sócrates, na qual o PSD tem estado à defesa – situação que se agravou com o regresso de Ferreira Leite. Enquanto assim for, dificilmente haverá uma alternativa ganhadora.

A maioria absoluta do PS construiu-se em torno de três eixos, todos funcionaram por contraponto aos governos do PSD: a governabilidade contra a instabilidade com Santana Lopes; a consolidação orçamental contra o défice excessivo de Ferreira Leite; e o “choque tecnológico” contra a ausência de vida para além do défice com Durão Barroso. Mesmo que as coisas não tenham sido exactamente assim, elas foram percepcionadas deste modo. José Sócrates não apenas se diferenciou, como teve condições para culpabilizar o PSD pela situação que herdou.

O contexto que hoje vivemos é ainda fruto desta gramática e os bons resultados relativos do PS são ainda explicáveis pela capacidade do Governo em responder com sucesso a estes três eixos: vivemos um período de estabilidade política, com consolidação das contas públicas e com reformas em várias áreas das políticas públicas, não necessariamente ligadas à disciplina orçamental.

Acontece que o contexto político está a mudar e uma nova solução vitoriosa passa pela capacidade de fazer perdurar a gramática anterior e introduzir elementos de uma nova. As próximas eleições já não se disputarão, no essencial, em torno da estabilidade política e da consolidação orçamental. Os temas dominantes tenderão a remeter para a capacidade de responder aos efeitos assimétricos da conjuntura internacional, isto é, as respostas às desigualdades acumuladas nas suas várias vertentes. A este nível, quer PSD, quer PS têm dificuldades.

O PSD porque com a eleição de Ferreira Leite reforçou a memória do passado (isto é, regressou à gramática anterior, colocando-se numa posição defensiva) e ajudou ao reposicionamento ideológico do Governo – são reveladores os exemplos das últimas semanas em que Ferreira Leite tornou possível ao executivo fazer provas de identidade de esquerda.

O PS porque os temas sociais, que serão dominantes, não foram centrais para a construção da identidade do actual executivo. Sinal disso é que o PS deixou de ser visto como “campeão” do combate à pobreza para passar a ser um partido que revela dificuldades ao lidarhttp://www.blogger.com/img/gl.link.gif com os dados sobre a pobreza (mesmo quando foram desenvolvidas medidas com assinalável eficácia para combater a pobreza e os dados revelam uma evolução positiva do fenómeno).

Manuela Ferreira Leite aparentava ter interpretado bem os sinais do novo ciclo, quando, ainda durante a campanha interna, trouxe as questões sociais para o topo da agenda. Contudo, desde a sua eleição, não só abandonou estes temas, como tem preferido gerir longos silêncios, combinados com declarações falhadas. Já o Governo recentrou o seu discurso, com o primeiro-ministro a puxar sistematicamente pelo que já fez nas áreas sociais e a apresentar novas medidas que procuram responder aos impactos assimétricos da crise. Resta saber se, para liderar de modo decisivo a nova gramática, basta apresentar os paliativos que a folga orçamental permite. É que se no passado a capacidade de responsabilizar o governo anterior serviu à afirmação do PS, hoje, ainda segundo os dados da Católica, os portugueses culpam mais o governo (36%) do que a crise internacional (30%) pela situação que vivemos. O que serve para recordar que, em política, quando a culpa fica solteira, os eleitores tendem a virar-se para outro lado, mesmo quando só ouvem um ensurdecedor silêncio.

publicado no Diário Económico.