O presente de César
Há uns tempos, num texto que cito de memória, o Presidente da República fixava a doutrina sobre o modo como iria gerir as suas intervenções. Para Cavaco Silva, a palavra deveria ser usada com parcimónia. Quanto menos falasse e quanto maior fosse o sentido de oportunidade das suas intervenções, mais o Presidente seria de facto ouvido. Das várias perplexidades que resultam da comunicação ao país da semana passada, à cabeça surge o incumprimento da doutrina definida pelo próprio Presidente. Cavaco Silva não só, perante a expectativa criada, não foi ouvido na quarta-feira, como relativamente ao Estatuto Político-Administrativo dos Açores, aparentemente já antes não o fora.
Logo no início da sua intervenção, Cavaco Silva afirmou ter alertado “vários dirigentes políticos” para os problemas em torno do Estatuto. Ora a necessidade de uma declaração, com pompa e circunstância, ao país, bem como a aprovação por unanimidade do Estatuto quer na Assembleia Regional dos Açores, quer na Assembleia da República, revelam que os “dirigentes políticos” fizeram ouvidos moucos às palavras do Presidente.
Mas também agora a palavra do Presidente não foi escutada. Não porque o assunto não justificasse uma intervenção presidencial – as questões institucionais não são secundárias e a qualidade da democracia depende em larga medida destas –, mas, sim, porque o modo escolhido para o fazer falhou. Os portugueses que seguiram a declaração do Presidente deverão ter-se dividido em dois grupos: os que não perceberam o que estava em causa e aqueles que, percebendo (isto é, os açorianos), discordaram das palavras de Cavaco Silva.
Tem sido justamente assinalado que o pré-anúncio da comunicação e o tabu entretanto criado não só deram azo a um sem número de especulações, como criaram uma expectativa que só poderia ser defraudada, afastando os portugueses da palavra do Presidente. Contudo, o aspecto mais surpreendente da comunicação não terá sido esse. O que estava em causa eram questões políticas e institucionais bastante relevantes, mas o Presidente da República, em lugar de as tratar como tal, enredou-se num discurso jurídico impenetrável para quem estava a ouvir. O que deveria ter sido tratado politicamente, foi encerrado numa conversa para juristas iniciados. A sensação que fica é que quem estava a falar não era o Presidente que deve falar para todos, mas algum assessor jurídico que ficou com a incumbência de acompanhar o Estatuto dos Açores.
Claro que os partidos políticos estão longe de saírem isentos de culpas de todo este processo. Não nos podemos deixar de questionar como é que foi possível que 230 deputados tenham aprovado por unanimidade um diploma que tem oito – sublinhe-se oito – normas inconstitucionais. Só há três respostas possíveis para esta questão: negligência pura; discordância face à Constituição – o que é estranho, pois conjuntamente podem cuidar de a alterar –; ou, no que se afigura mais provável, cedência às exigências provenientes das regiões autónomas, independentemente da sua bondade intrínseca. O que nos leva às consequências imediatas da comunicação do Presidente.
Tradicionalmente o PS/Açores tinha uma desvantagem comparativa face ao PSD regional: era visto como um partido com reservas face ao aprofundar da autonomia. Com a sua comunicação, Cavaco Silva conseguiu consolidar a inversão de posições relativas – colocou o PSD/Açores na posição muito desconfortável de não poder, ao mesmo tempo, criticar abertamente o Presidente e distanciar-se da defesa do Estatuto tal como aprovado pelo Parlamento Regional. Com um crescimento do PIB bem superior à média nacional, com um conjunto de investimentos públicos, mas, também, privados muito significativos e com ‘superávit’ orçamental, Carlos César preparava-se para ter mais uma vitória nas próximas eleições regionais. Cavaco Silva, ao encostar o PSD/Açores a um dilema insuperável, ofereceu a Carlos César um presente com que o próprio não sonharia: um triunfo muito folgado.
Resta, contudo, saber se o Presente de César não será, como no livro de Astérix, ilusório e se a Assembleia da República não terá, de facto, como tantas vezes aconteceu no passado com a Madeira, cedido excessivamente às pressões autonómicas dos Açores e se, nisto, o PS nacional não terá aceite trocar mais uma vitória eleitoral nos Açores por alguns princípios que deveriam ser inalienáveis para um funcionamento saudável da nossa democracia, entre eles o equilíbrio de poderes.
publicado no Diário Económico.
Logo no início da sua intervenção, Cavaco Silva afirmou ter alertado “vários dirigentes políticos” para os problemas em torno do Estatuto. Ora a necessidade de uma declaração, com pompa e circunstância, ao país, bem como a aprovação por unanimidade do Estatuto quer na Assembleia Regional dos Açores, quer na Assembleia da República, revelam que os “dirigentes políticos” fizeram ouvidos moucos às palavras do Presidente.
Mas também agora a palavra do Presidente não foi escutada. Não porque o assunto não justificasse uma intervenção presidencial – as questões institucionais não são secundárias e a qualidade da democracia depende em larga medida destas –, mas, sim, porque o modo escolhido para o fazer falhou. Os portugueses que seguiram a declaração do Presidente deverão ter-se dividido em dois grupos: os que não perceberam o que estava em causa e aqueles que, percebendo (isto é, os açorianos), discordaram das palavras de Cavaco Silva.
Tem sido justamente assinalado que o pré-anúncio da comunicação e o tabu entretanto criado não só deram azo a um sem número de especulações, como criaram uma expectativa que só poderia ser defraudada, afastando os portugueses da palavra do Presidente. Contudo, o aspecto mais surpreendente da comunicação não terá sido esse. O que estava em causa eram questões políticas e institucionais bastante relevantes, mas o Presidente da República, em lugar de as tratar como tal, enredou-se num discurso jurídico impenetrável para quem estava a ouvir. O que deveria ter sido tratado politicamente, foi encerrado numa conversa para juristas iniciados. A sensação que fica é que quem estava a falar não era o Presidente que deve falar para todos, mas algum assessor jurídico que ficou com a incumbência de acompanhar o Estatuto dos Açores.
Claro que os partidos políticos estão longe de saírem isentos de culpas de todo este processo. Não nos podemos deixar de questionar como é que foi possível que 230 deputados tenham aprovado por unanimidade um diploma que tem oito – sublinhe-se oito – normas inconstitucionais. Só há três respostas possíveis para esta questão: negligência pura; discordância face à Constituição – o que é estranho, pois conjuntamente podem cuidar de a alterar –; ou, no que se afigura mais provável, cedência às exigências provenientes das regiões autónomas, independentemente da sua bondade intrínseca. O que nos leva às consequências imediatas da comunicação do Presidente.
Tradicionalmente o PS/Açores tinha uma desvantagem comparativa face ao PSD regional: era visto como um partido com reservas face ao aprofundar da autonomia. Com a sua comunicação, Cavaco Silva conseguiu consolidar a inversão de posições relativas – colocou o PSD/Açores na posição muito desconfortável de não poder, ao mesmo tempo, criticar abertamente o Presidente e distanciar-se da defesa do Estatuto tal como aprovado pelo Parlamento Regional. Com um crescimento do PIB bem superior à média nacional, com um conjunto de investimentos públicos, mas, também, privados muito significativos e com ‘superávit’ orçamental, Carlos César preparava-se para ter mais uma vitória nas próximas eleições regionais. Cavaco Silva, ao encostar o PSD/Açores a um dilema insuperável, ofereceu a Carlos César um presente com que o próprio não sonharia: um triunfo muito folgado.
Resta, contudo, saber se o Presente de César não será, como no livro de Astérix, ilusório e se a Assembleia da República não terá, de facto, como tantas vezes aconteceu no passado com a Madeira, cedido excessivamente às pressões autonómicas dos Açores e se, nisto, o PS nacional não terá aceite trocar mais uma vitória eleitoral nos Açores por alguns princípios que deveriam ser inalienáveis para um funcionamento saudável da nossa democracia, entre eles o equilíbrio de poderes.
publicado no Diário Económico.
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