terça-feira, setembro 16, 2008

Desigualdades e facilitismo

De tempos a tempos, o país levanta-se num movimento de comoção nacional em torno dos níveis intoleráveis de desigualdades. Depois, a comoção nacional logo se suspende e, até que o INE ou o Eurostat divulguem novos números, o assunto aparentemente sai da agenda. Escrevo aparentemente porque enquanto a pobreza é varrida para debaixo do tapete, as políticas que a combatem parecem beneficiar do exclusivo dos ataques políticos e do escrutínio público.

No que toca a políticas públicas eficazes no combate à pobreza não há pólvora por inventar: a pobreza combate-se com mecanismos de redistribuição de rendimento mais equitativos (quer em sede fiscal, quer através da contratação colectiva), com políticas de rendimento mínimo e com investimento nas qualificações. Ora, paradoxalmente, se estas políticas não produzem resultados, já se sabe, assistiremos a uma justa onda de indignação com as desigualdades. Contudo, se os indicadores começam a mudar, escusado será dizer, não devemos esperar nenhum tipo de satisfação colectiva. Pelo contrário, é garantido que o cepticismo regressará e a explicação para os resultados será invariavelmente uma: facilitismo.

É assim desde que em Portugal, com atraso de décadas em relação aos nossos parceiros europeus, foi lançado o rendimento mínimo e o mesmo se passa agora com o combate ao abandono escolar.

Esta semana, foram conhecidos os dados sobre os níveis de retenção (vulgo chumbos ou reprovações) no básico e no secundário. Ficámos a saber que baixaram e que tal aconteceu quer nos anos com exames nacionais, quer naqueles em que não existem. Aliás, uma descida que não é nova e que confirma uma tendência longa. Em 1996/97 a taxa de retenção no básico era de 15,5% quando hoje é de 8,3% e no secundário de 36,6 quando hoje é de 22,4%. A razão para que tal tenha acontecido só pode, afinal, ter sido uma: facilitismo.

O problema é que a relação entre maior qualidade do ensino, por um lado, e taxas de retenção, por outro, é espúria. É que se a níveis de retenção mais elevados correspondesse um sistema de ensino mais exigente, como explicar que os países em que pura e simplesmente não há chumbos, sejam também aqueles que apresentam sistematicamente melhores resultados nas provas internacionais de desempenho (por exemplo, no PISA)?

O fetichismo do chumbo é uma monomania nacional, que tende a esquecer as estratégias desenvolvidas noutros países europeus, onde o combate ao insucesso escolar se faz, há décadas, não afastando do sistema os alunos com dificuldades, mas com um acompanhamento individualizado, atento aos primeiros sinais de dificuldade na aprendizagem e capaz de desenvolver planos de recuperação adaptados aos problemas específicos de cada aluno. A retenção, como tem sido demonstrado por um número infindável de estudos, é um mau instrumento pedagógico. Não serve para que os alunos recuperem o atraso, tende antes para a segregação dos alunos.

A insistência nas retenções tem aliás um efeito singular: atinge na sua grande maioria os filhos de famílias com fracos recursos culturais e económicos. Ou seja, contribui para o afastamento do sistema educativo daqueles que mais precisam de fazer parte dele – o que ajuda a explicar a persistência, em Portugal, de taxas de abandono escolar que não encontram paralelo na Europa. Não por acaso, no relatório da UNESCO, “Education for All”, Portugal aparece como o único país do mundo desenvolvido que apresentava taxas de retenção no ensino básico comparáveis a alguns dos países mais pobres.

Estes números, aliás, têm consequências reais para o país. Por um lado, contribuem para a reprodução geracional da desigualdade naquela que é a sociedade mais desigual da Europa; por outro, por estarem associados a défices de qualificação, colocam em risco a capacidade adaptativa do nosso tecido económico. Aliás, de acordo com estimativas da OCDE, o PIB português poderia ter crescido mais 1,2 pontos percentuais por ano, entre as décadas de 1970 a 1990, se os nossos níveis de escolaridade estivessem equiparados à média dos países da OCDE.

É evidente que construir práticas pedagógicas alternativas aos chumbos é muito exigente e requer da Escola Pública e dos professores um enorme investimento. Mas para quem acha que o combate às desigualdades passa por ter a escola como mecanismo de integração e de generalização das qualificações, esse é o único caminho. Naturalmente que é bem mais fácil, de cada vez que é dado um passo no bom sentido, vir com o discurso do facilitismo. O problema é que não é apenas fácil, é também a melhor forma de aceitar passivamente os níveis de qualificação e de abandono escolar precoce que nos deviam envergonhar colectivamente.

publicado no Diário Económico.