A gestão do risco e o O.E.
O produtor de cinema Samuel Goldwyn terá um dia dado o seguinte conselho: “nunca prevejas nada, particularmente o futuro”. O modo como a actual crise se instalou é a prova de que o conselho não foi seguido. Não é preciso procurar muito para encontrar peritos que se apressaram a desvalorizar a crise que se iniciou no sub-prime, já para não referir a quase-unanimidade na identificação dos principais problemas que, dizia-se, enfrentavam as economias políticas ocidentais (os desequilíbrios orçamentais, a inflação e o preço das matérias primas). Subitamente a agenda mudou e a crise bateu-nos à porta vinda directamente dos mercados financeiros, assolados por dificuldades de liquidez.
A natureza inesperada da crise serve, desde logo, para confirmar a falibilidade dos peritos. Mas, e arrisco a fazer a previsão, esta falibilidade dos peritos vai ter uma consequência: a política vai (re)ganhar importância face ao saber “científico”, supostamente apolítico e com verdades definitivas, desde logo sobre o funcionamento dos mercados.
Regresso ao conceito de ‘sociedade de risco’ de Ulrich Beck (risk society: towards a new modernity, 1986), porque, ao mesmo tempo que é poderoso para descrever o contexto actual, serve também para alertar para os erros em que a política tende a incorrer perante situações de incerteza.
Para Beck, um aspecto distintivo das sociedades da modernidade reflexiva é o risco ter deixado de ser apenas natural e ter passado a ser, também, manufacturado. Se nas sociedades tradicionais, os riscos estavam, por exemplo, associados predominantemente a catástrofes naturais, não previsíveis, nos nossos dias os riscos são também o resultado imprevisto de tentativas para minimizar o próprio risco. Esta transformação tem consequências profundas para a organização das relações sociais e também para as instituições políticas.
Desde logo porque, pense-se na crise actual, sendo a incerteza construída, ao contrário do que acontece nas catástrofes naturais, é difícil identificar com exactidão as suas causas. Em parte importante porque os peritos aos quais deveríamos ter recorrido para explicar o que se está a passar, foram os mesmíssimos que controlavam a gramática dominante e falharam na “previsão”. As consequências são profundas, se não há responsáveis, podemos falar de um quadro de “irresponsabilidade organizada”, que é a mais brutal das tiranias.
O que fazer perante este contexto? Há duas respostas frequentes, ambas recorrem à tradição e tendem a estar condenadas ao fracasso. A primeira é a de considerar os riscos conjunturais e insistir nas soluções até então mobilizadas (o caso dos que, perante a actual crise, reagem à criação de novos mecanismos de regulação); a segunda consiste em recorrer a soluções que funcionaram no passado, mas que não se ajustam ao novo contexto (ex. o regresso anunciado das soluções keynesianas tal como usadas durante os “trinta gloriosos”).
O que tende a acontecer em contextos de grande incerteza é revelarmo-nos presos a um vocabulário desajustado face às manifestações da crise. O desafio é por isso o de, colocar de lado as nostalgias, e desenvolver uma nova gramática capaz de descrever com rigor o que aconteceu e de propor alternativas. Para a construção dessa gramática, tal como no passado, são necessárias boas soluções técnicas, mas, acima de tudo, políticos que funcionem como selectores e amplificadores da nova linguagem.
O que nos traz até Portugal e à discussão do Orçamento de Estado que hoje é conhecido. A crise teve, desde já, um efeito: alterou radicalmente os termos do debate. Até aqui o tema dominante era a consolidação. O contexto de incerteza trouxe para o topo da agenda a resposta à crise e aos choques assimétricos que esta produz. A este desafio vai estar necessariamente associada uma nova gramática, que secundariza a fixação com o défice. Desse ponto de vista, a discussão do OE vai revelar-se determinante para fixar os termos do debate nas próximas legislativas. Daquilo que já se sabe, o Governo leva vantagem sobre a oposição. O modo como tem vindo a reconfigurar a sua agenda tem sido decisivo. É claro que estamos a falar de micro-respostas para uma macro-questão. Mas, de um momento para o outro, quando se esperava que as dificuldades económicas e sociais colocassem o governo em maus lençóis, foi a oposição que ficou a discursar numa gramática que politicamente já não existe. O que serve para recordar que, nas sociedades de risco, a política caracteriza-se também por uma enorme volatilidade.
publicado no Diário Económico.
A natureza inesperada da crise serve, desde logo, para confirmar a falibilidade dos peritos. Mas, e arrisco a fazer a previsão, esta falibilidade dos peritos vai ter uma consequência: a política vai (re)ganhar importância face ao saber “científico”, supostamente apolítico e com verdades definitivas, desde logo sobre o funcionamento dos mercados.
Regresso ao conceito de ‘sociedade de risco’ de Ulrich Beck (risk society: towards a new modernity, 1986), porque, ao mesmo tempo que é poderoso para descrever o contexto actual, serve também para alertar para os erros em que a política tende a incorrer perante situações de incerteza.
Para Beck, um aspecto distintivo das sociedades da modernidade reflexiva é o risco ter deixado de ser apenas natural e ter passado a ser, também, manufacturado. Se nas sociedades tradicionais, os riscos estavam, por exemplo, associados predominantemente a catástrofes naturais, não previsíveis, nos nossos dias os riscos são também o resultado imprevisto de tentativas para minimizar o próprio risco. Esta transformação tem consequências profundas para a organização das relações sociais e também para as instituições políticas.
Desde logo porque, pense-se na crise actual, sendo a incerteza construída, ao contrário do que acontece nas catástrofes naturais, é difícil identificar com exactidão as suas causas. Em parte importante porque os peritos aos quais deveríamos ter recorrido para explicar o que se está a passar, foram os mesmíssimos que controlavam a gramática dominante e falharam na “previsão”. As consequências são profundas, se não há responsáveis, podemos falar de um quadro de “irresponsabilidade organizada”, que é a mais brutal das tiranias.
O que fazer perante este contexto? Há duas respostas frequentes, ambas recorrem à tradição e tendem a estar condenadas ao fracasso. A primeira é a de considerar os riscos conjunturais e insistir nas soluções até então mobilizadas (o caso dos que, perante a actual crise, reagem à criação de novos mecanismos de regulação); a segunda consiste em recorrer a soluções que funcionaram no passado, mas que não se ajustam ao novo contexto (ex. o regresso anunciado das soluções keynesianas tal como usadas durante os “trinta gloriosos”).
O que tende a acontecer em contextos de grande incerteza é revelarmo-nos presos a um vocabulário desajustado face às manifestações da crise. O desafio é por isso o de, colocar de lado as nostalgias, e desenvolver uma nova gramática capaz de descrever com rigor o que aconteceu e de propor alternativas. Para a construção dessa gramática, tal como no passado, são necessárias boas soluções técnicas, mas, acima de tudo, políticos que funcionem como selectores e amplificadores da nova linguagem.
O que nos traz até Portugal e à discussão do Orçamento de Estado que hoje é conhecido. A crise teve, desde já, um efeito: alterou radicalmente os termos do debate. Até aqui o tema dominante era a consolidação. O contexto de incerteza trouxe para o topo da agenda a resposta à crise e aos choques assimétricos que esta produz. A este desafio vai estar necessariamente associada uma nova gramática, que secundariza a fixação com o défice. Desse ponto de vista, a discussão do OE vai revelar-se determinante para fixar os termos do debate nas próximas legislativas. Daquilo que já se sabe, o Governo leva vantagem sobre a oposição. O modo como tem vindo a reconfigurar a sua agenda tem sido decisivo. É claro que estamos a falar de micro-respostas para uma macro-questão. Mas, de um momento para o outro, quando se esperava que as dificuldades económicas e sociais colocassem o governo em maus lençóis, foi a oposição que ficou a discursar numa gramática que politicamente já não existe. O que serve para recordar que, nas sociedades de risco, a política caracteriza-se também por uma enorme volatilidade.
publicado no Diário Económico.
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