A dimensão da crise
A crise instalou-se e, se poucos foram capazes de a antecipar, ninguém hoje consegue prever com segurança nem a sua dimensão, muito menos o seu fim. Neste contexto, é natural que o pessimismo se tenha tornado regra. No meio dos cenários mais negros, vale a pena por isso introduzir uma nota de optimismo: não apenas relativamente à dimensão da crise, mas, também, quanto às saídas possíveis. A melhor forma de o fazer talvez seja olhar para a última grande recessão, no início da década de oitenta. Estarão as economias ocidentais agora numa situação pior do que então? Há pelo menos três factores que tornam esta recessão comparativamente menos profunda, ao mesmo tempo que abrem melhores possibilidades para dela sairmos.
O primeiro desses factores é demográfico e prende-se com a articulação entre mão-de-obra disponível e níveis de participação no mercado de trabalho. No início dos anos oitenta, não apenas as taxas de emprego eram mais baixas para a generalidade dos países da OCDE, como a pressão sobre o mercado de trabalho é hoje inferior, tendo em conta o envelhecimento progressivo da população. Enquanto há cerca de três décadas a geração dos ‘baby-boomers’ ainda estava a entrar no mercado de trabalho, hoje a pressão demográfica é comparativamente menor. O que serve para recordar que a crise será tanto maior quanto menor for a capacidade de conservar os níveis actuais de emprego, com políticas que os protejam. Com desemprego controlado, resistiremos à crise melhor do que se os ajustamentos forem feitos do lado do emprego. Aliás, a este propósito vale a pena olhar para o que se tem passado no Japão na última década, onde arrefecimento económico se tem combinado com deflação e com emprego alto e pouca variação do desemprego.
O segundo factor remete para os ajustamentos entretanto feitos nos mecanismos de protecção social. Nas economias mais avançadas, no início da década de oitenta, a generosidade das pensões de reforma antecipada e do subsídio de desemprego, combinados com baixos níveis de fiscalização das pensões de invalidez, estimulou ajustamentos que oneraram excessivamente a despesa pública. A racionalização e modernização dos instrumentos de protecção social entretanto feita, não apenas descarta essa possibilidade, como limita os efeitos de maturação destas políticas, que não poderiam deixar de funcionar como entrave ao investimento público.
O terceiro factor é eminentemente político: enquanto para enfrentar a anterior recessão eram defendidas duas vias diametralmente opostas – sintetizadas nas nacionalizações preconizadas durante a primeira presidência Mitterrand e na retracção do papel do Estado levada a cabo por Thatcher – o cenário é, agora, bem diferente. Há hoje um consenso alargado, pouco ideológico é verdade, assente no pragmatismo, que defende a necessidade de coordenar políticas, de regular os mercados internacionais e de promover o investimento público como mecanismo para ultrapassar a estagnação económica. É este consenso que faz com que o centro gravitacional da política se tenha deslocado para temas tradicionalmente à esquerda. A opção já não passa, como no passado, pela defesa de uma baixa de impostos sobre o rendimento para aumentar o rendimento disponível (até porque, como lembrava recentemente Robert Reich, esses recursos tendem a ser usados para pagar dívidas, mais do que para comprar bens e serviços), mas sim pelo investimento em infra-estruturas, serviços sociais e energias renováveis que, ao mesmo tempo que garantem a sustentabilidade do emprego no imediato, têm um efeito positivo no médio prazo. Citando ainda Reich, os governos têm hoje de ‘spend big time’.
Acontece que estes factores não estão presentes de igual modo no conjunto dos países do capitalismo organizado. O que serve para lembrar que a crise não poderá deixar de ter resultados assimétricos e que o modo como cada país vai sair dela depende da prioridade que for dada à conservação de níveis elevados de emprego, dos ajustamentos racionalizadores da protecção social e, claro, da capacidade institucional, baseada no consenso político em torno da promoção do investimento público ultrapassando as regras apertadas do pacto de estabilidade e crescimento. Talvez estes eixos ajudam a prever o que pode ou não acontecer em Portugal.
Nota: Devo a Anton Hemerijck a ideia de comparar as duas crises nestas dimensões.
publicado no Diário Económico.
O primeiro desses factores é demográfico e prende-se com a articulação entre mão-de-obra disponível e níveis de participação no mercado de trabalho. No início dos anos oitenta, não apenas as taxas de emprego eram mais baixas para a generalidade dos países da OCDE, como a pressão sobre o mercado de trabalho é hoje inferior, tendo em conta o envelhecimento progressivo da população. Enquanto há cerca de três décadas a geração dos ‘baby-boomers’ ainda estava a entrar no mercado de trabalho, hoje a pressão demográfica é comparativamente menor. O que serve para recordar que a crise será tanto maior quanto menor for a capacidade de conservar os níveis actuais de emprego, com políticas que os protejam. Com desemprego controlado, resistiremos à crise melhor do que se os ajustamentos forem feitos do lado do emprego. Aliás, a este propósito vale a pena olhar para o que se tem passado no Japão na última década, onde arrefecimento económico se tem combinado com deflação e com emprego alto e pouca variação do desemprego.
O segundo factor remete para os ajustamentos entretanto feitos nos mecanismos de protecção social. Nas economias mais avançadas, no início da década de oitenta, a generosidade das pensões de reforma antecipada e do subsídio de desemprego, combinados com baixos níveis de fiscalização das pensões de invalidez, estimulou ajustamentos que oneraram excessivamente a despesa pública. A racionalização e modernização dos instrumentos de protecção social entretanto feita, não apenas descarta essa possibilidade, como limita os efeitos de maturação destas políticas, que não poderiam deixar de funcionar como entrave ao investimento público.
O terceiro factor é eminentemente político: enquanto para enfrentar a anterior recessão eram defendidas duas vias diametralmente opostas – sintetizadas nas nacionalizações preconizadas durante a primeira presidência Mitterrand e na retracção do papel do Estado levada a cabo por Thatcher – o cenário é, agora, bem diferente. Há hoje um consenso alargado, pouco ideológico é verdade, assente no pragmatismo, que defende a necessidade de coordenar políticas, de regular os mercados internacionais e de promover o investimento público como mecanismo para ultrapassar a estagnação económica. É este consenso que faz com que o centro gravitacional da política se tenha deslocado para temas tradicionalmente à esquerda. A opção já não passa, como no passado, pela defesa de uma baixa de impostos sobre o rendimento para aumentar o rendimento disponível (até porque, como lembrava recentemente Robert Reich, esses recursos tendem a ser usados para pagar dívidas, mais do que para comprar bens e serviços), mas sim pelo investimento em infra-estruturas, serviços sociais e energias renováveis que, ao mesmo tempo que garantem a sustentabilidade do emprego no imediato, têm um efeito positivo no médio prazo. Citando ainda Reich, os governos têm hoje de ‘spend big time’.
Acontece que estes factores não estão presentes de igual modo no conjunto dos países do capitalismo organizado. O que serve para lembrar que a crise não poderá deixar de ter resultados assimétricos e que o modo como cada país vai sair dela depende da prioridade que for dada à conservação de níveis elevados de emprego, dos ajustamentos racionalizadores da protecção social e, claro, da capacidade institucional, baseada no consenso político em torno da promoção do investimento público ultrapassando as regras apertadas do pacto de estabilidade e crescimento. Talvez estes eixos ajudam a prever o que pode ou não acontecer em Portugal.
Nota: Devo a Anton Hemerijck a ideia de comparar as duas crises nestas dimensões.
publicado no Diário Económico.
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