Um falhanço intelectual
Não estamos perante mais uma crise cíclica, solucionável por um conjunto de ajustamentos tradicionais. Nem perante um incidente particular e irrepetível.
Como recordava John Kay, esta crise foi provocada pelo ‘sub-prime' na mesma medida que a Primeira Guerra Mundial foi causada pelo assassinato de Francisco Fernando. A crise tem razões estruturais e revelou vários falhanços: da incapacidade dos mercados para se autocorrigirem (uma premissa em que assentava a sua eficiência), até ao carácter opaco, nuns casos, inexistente noutros, dos mecanismos de regulação do sistema financeiro, passando pela inexistência de uma entidade financeira com recursos suficientes para estabilizar os preços numa economia global bem mais aberta. Uma crise desta dimensão assenta num falhanço intelectual e requer novas ideias.
É precisamente de respostas a esse falhanço que é feita a agenda da Cimeira de Londres. Tem sido dito que estamos perante a primeira reunião desde Bretton Woods, em 1944, com uma agenda substantiva de regulação supranacional. Pode parecer excessivo, já que não se trata, naturalmente, de uma agenda tão profunda, mas ainda bem que os Governos de hoje não precisaram de esperar que à depressão se seguisse uma guerra, para procurarem agir em conjunto.
Há razões para um optimismo moderado em relação às decisões da reunião do G20. E muitas delas têm a ver com a pressão popular e com o novo ambiente político. Como sublinhava Will Hutton, no "Observer" deste fim-de-semana: os executivos da AIG viram-se obrigados a devolver os seus prémios; os executivos dos bancos suíços temem viajar, com receio de serem presos; os parceiros do Barclays no ‘project knight' (um sistema de "eficácia fiscal") denunciaram o esquema e muitos outros bancos têm abandonado esquemas equivalentes. Este novo contexto é fruto da crescente intolerância pública e moral perante os sistemas de benefícios perversos que fazem parte da história desta crise e leva a que não fazer nada não seja uma opção disponível para os líderes do G20.
Para além do que são as respostas de emergência à crise - e que todos os governos têm, com ligeiras variações, tomado (o estímulo à procura através do investimento público) -, o essencial da agenda da Cimeira de Londres passa pela reforma da regulação global e das instituições financeiras.
Temas que, até há pouco, seria impensável que estivessem na agenda, são agora o centro da discussão: a alteração do papel das agências de ‘rating'; a regulação dos ‘hedge funds' e dos produtos derivados; a transparência dos ‘off-shores'; um enquadramento para os bónus no sistema financeiro; regras mais apertadas para a proporção de capital detida pelas instituições financeiras por relação ao risco que assumem; e, acima de tudo, a institucionalização de colégios globais de supervisão e regulação, como sugerido pelo relatório Larosière, que permitam também fazer uma gestão preventiva das crises.
É também muito provável que a reunião do G20 reforce o papel do FMI, quer em termos de recursos financeiros disponíveis, quer quanto aos seus poderes para monitorar as políticas económicas domésticas. Este é um assunto tão central como delicado. O FMI foi criado num contexto radicalmente diferente, em que os EUA e a Europa eram os motores da economia mundial (e os maiores credores), e agora tem manifestas dificuldades em promover a cooperação entre as diversas economias, nomeadamente com as emergentes dos BRIC. Para além do mais, vê ainda a sua actividade limitada pelo montante das suas reservas. Mas a existência de uma instituição financeira global, com recursos suficientes, é um alicerce indispensável para proteger os países pobres dos impactos das crises globais, tornar os preços menos voláteis, estimular os fluxos de capital para as economias mais afectadas e contrariar a propensão para o capitalismo de casino do sistema financeiro.
Para além do optimismo, há também boas razões para cepticismo em relação aos resultados da Cimeira: a clivagem entre os EUA, que falam a uma só voz, a UE que fala, nuns casos, a várias vozes, noutros não tem voz, e ainda outros países, cuja voz é imprevisível; o risco de proteccionismo, sob a forma de soluções que tentam remediar os problemas económicos de um país a expensas dos parceiros comerciais. Soluções pouco sustentáveis e, por assentarem num egoísmo nacionalista, moralmente iníquas. A cimeira de Londres não pode servir para deitar o bebé (o comércio livre) fora com a água do banho (a desregulação).
publicado no Diário Económico.
Como recordava John Kay, esta crise foi provocada pelo ‘sub-prime' na mesma medida que a Primeira Guerra Mundial foi causada pelo assassinato de Francisco Fernando. A crise tem razões estruturais e revelou vários falhanços: da incapacidade dos mercados para se autocorrigirem (uma premissa em que assentava a sua eficiência), até ao carácter opaco, nuns casos, inexistente noutros, dos mecanismos de regulação do sistema financeiro, passando pela inexistência de uma entidade financeira com recursos suficientes para estabilizar os preços numa economia global bem mais aberta. Uma crise desta dimensão assenta num falhanço intelectual e requer novas ideias.
É precisamente de respostas a esse falhanço que é feita a agenda da Cimeira de Londres. Tem sido dito que estamos perante a primeira reunião desde Bretton Woods, em 1944, com uma agenda substantiva de regulação supranacional. Pode parecer excessivo, já que não se trata, naturalmente, de uma agenda tão profunda, mas ainda bem que os Governos de hoje não precisaram de esperar que à depressão se seguisse uma guerra, para procurarem agir em conjunto.
Há razões para um optimismo moderado em relação às decisões da reunião do G20. E muitas delas têm a ver com a pressão popular e com o novo ambiente político. Como sublinhava Will Hutton, no "Observer" deste fim-de-semana: os executivos da AIG viram-se obrigados a devolver os seus prémios; os executivos dos bancos suíços temem viajar, com receio de serem presos; os parceiros do Barclays no ‘project knight' (um sistema de "eficácia fiscal") denunciaram o esquema e muitos outros bancos têm abandonado esquemas equivalentes. Este novo contexto é fruto da crescente intolerância pública e moral perante os sistemas de benefícios perversos que fazem parte da história desta crise e leva a que não fazer nada não seja uma opção disponível para os líderes do G20.
Para além do que são as respostas de emergência à crise - e que todos os governos têm, com ligeiras variações, tomado (o estímulo à procura através do investimento público) -, o essencial da agenda da Cimeira de Londres passa pela reforma da regulação global e das instituições financeiras.
Temas que, até há pouco, seria impensável que estivessem na agenda, são agora o centro da discussão: a alteração do papel das agências de ‘rating'; a regulação dos ‘hedge funds' e dos produtos derivados; a transparência dos ‘off-shores'; um enquadramento para os bónus no sistema financeiro; regras mais apertadas para a proporção de capital detida pelas instituições financeiras por relação ao risco que assumem; e, acima de tudo, a institucionalização de colégios globais de supervisão e regulação, como sugerido pelo relatório Larosière, que permitam também fazer uma gestão preventiva das crises.
É também muito provável que a reunião do G20 reforce o papel do FMI, quer em termos de recursos financeiros disponíveis, quer quanto aos seus poderes para monitorar as políticas económicas domésticas. Este é um assunto tão central como delicado. O FMI foi criado num contexto radicalmente diferente, em que os EUA e a Europa eram os motores da economia mundial (e os maiores credores), e agora tem manifestas dificuldades em promover a cooperação entre as diversas economias, nomeadamente com as emergentes dos BRIC. Para além do mais, vê ainda a sua actividade limitada pelo montante das suas reservas. Mas a existência de uma instituição financeira global, com recursos suficientes, é um alicerce indispensável para proteger os países pobres dos impactos das crises globais, tornar os preços menos voláteis, estimular os fluxos de capital para as economias mais afectadas e contrariar a propensão para o capitalismo de casino do sistema financeiro.
Para além do optimismo, há também boas razões para cepticismo em relação aos resultados da Cimeira: a clivagem entre os EUA, que falam a uma só voz, a UE que fala, nuns casos, a várias vozes, noutros não tem voz, e ainda outros países, cuja voz é imprevisível; o risco de proteccionismo, sob a forma de soluções que tentam remediar os problemas económicos de um país a expensas dos parceiros comerciais. Soluções pouco sustentáveis e, por assentarem num egoísmo nacionalista, moralmente iníquas. A cimeira de Londres não pode servir para deitar o bebé (o comércio livre) fora com a água do banho (a desregulação).
publicado no Diário Económico.
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