Autoritarismo de vão-de-escada
De há uns tempos para cá tem-se instalado a ideia de que a democracia portuguesa se está a degradar.
Dos processos disciplinares na DREN, passando pela apreensão de livros pela PSP, até à censura do Ministério Público a um cortejo de carnaval e o mais recente anúncio da Antena 1, onde uma locutora afirma que uma manifestação é contra quem quer chegar a horas, há de facto vários casos que não são aceitáveis numa democracia institucionalizada. Mas será que estamos perante uma tendência? Haverá algo de novo ou trata-se apenas da reprodução de resquícios de autoritarismo que persistem no país?
Uma primeira constatação é que nenhum dos casos recentes teve origem no poder político. Há, aliás, sinais de que em Portugal, dos vários poderes, o político foi não só o que mais se democratizou, como é também o mais exposto à sindicância democrática. Depois, estes exemplos de tiques autoritários não escolhem origem, há-os para todos os gostos: da administração regional às forças policiais, passando pela magistratura até uma empresa pública.
O que estes casos sugerem é que, enquanto se democratizaram as relações de poder ao nível macro, em Portugal há uma espécie de autoritarismo de vão-de-escada, baseado em micropoderes que beneficiam do lastro de autoritarismo que persiste na sociedade portuguesa. Na verdade, não é necessário incitamento activo vindo de cima (leia-se, do poder político), para que nas mais diversas esferas se assista ao exercício de autoridade com escassa cultura democrática. Há uma rede de micropoderes, que se encontra difundida na nossa sociedade e que não nasce necessariamente do centro. Além do mais, em democracia, o autoritarismo é como o tango, precisa de pelo menos dois para existir. Ou seja, o exercício autoritário do poder requer que uma das partes exerça um constrangimento activo, mas necessita também que haja uma predisposição social e individual para aceitá-lo.
O exemplo do anúncio da RDP que acabou por ser suspenso é elucidativo. Para que nos tenha sido possível ver o vídeo, foi necessário que, pelo menos, uma equipa de criativos numa agência, um director criativo, uma jornalista, um actor, responsáveis do marketing e administradores numa empresa pública tenham participado na produção do filme. Ora não deixa de ser surpreendente que a nenhum dos participantes tenha ocorrido que a mensagem era no mínimo questionável e que revelava um desrespeito pelo direito à manifestação, que faz parte do código genético de qualquer democracia.
Na semana passada, a revista "Visão" traçava um perfil da directora da DREN. A ser verdade o que publica o jornalista Miguel Carvalho, deve ser difícil encontrar um exemplo tão representativo da persistência de uma cultura autoritária, baseada em micropoderes na administração pública. Das ameaças de processos disciplinares, passando pela impaciência perante a burocracia (que ainda assim é o que nos protege muitas das vezes da discricionariedade) e a opção por uma "gestão flexível" (que tende a ser baseada no princípio do "quero, posso e mando", que confunde autoritarismo com eficácia), até aos pedidos de anonimato nas declarações ao jornalista por "receio de represálias", estão lá todos os elementos de um exercício de funções públicas pouco consentâneo com a democratização do poder.
Perante estes casos, o Governo tem invariavelmente a mesma atitude: sublinha, com justiça, que não tem responsabilidade directa nos actos e, com legitimidade, sustenta que não interfere na autonomia, nuns casos das polícias, noutros dos tribunais, e ainda noutros do serviço público de televisão e rádio. Mas será que nos podemos dar como satisfeitos com esta atitude? Numa sociedade em que persiste uma cultura autoritária, com pequenas tiranias quotidianas, é possível à esfera política assobiar para o lado, como se nada se passasse?
O autoritarismo de vão-de-escada não se intensificou com este Governo, é apenas a outra face da democracia portuguesa e um lastro da ditadura que não foi extirpado da sociedade portuguesa. Mas precisamente por isso, é necessária uma pedagogia que o contrarie activamente. Há boas razões para que os ministros, pelas funções que exercem, mantenham reservas nas críticas à atitude de um magistrado, de um grupo de polícias, ou até da administração de uma empresa pública. Essa reserva preserva a autonomia institucional, que é algo de que depende também a democracia, mas é estranho que o PS, partido que suporta o Governo, adopte a mesma atitude, escolhendo o silêncio, quando deveria optar pela pedagogia democrática. O silêncio é aliás uma forma passiva de dar respaldo social ao autoritarismo de vão-de-escada.
publicado no Diário Económico.
Dos processos disciplinares na DREN, passando pela apreensão de livros pela PSP, até à censura do Ministério Público a um cortejo de carnaval e o mais recente anúncio da Antena 1, onde uma locutora afirma que uma manifestação é contra quem quer chegar a horas, há de facto vários casos que não são aceitáveis numa democracia institucionalizada. Mas será que estamos perante uma tendência? Haverá algo de novo ou trata-se apenas da reprodução de resquícios de autoritarismo que persistem no país?
Uma primeira constatação é que nenhum dos casos recentes teve origem no poder político. Há, aliás, sinais de que em Portugal, dos vários poderes, o político foi não só o que mais se democratizou, como é também o mais exposto à sindicância democrática. Depois, estes exemplos de tiques autoritários não escolhem origem, há-os para todos os gostos: da administração regional às forças policiais, passando pela magistratura até uma empresa pública.
O que estes casos sugerem é que, enquanto se democratizaram as relações de poder ao nível macro, em Portugal há uma espécie de autoritarismo de vão-de-escada, baseado em micropoderes que beneficiam do lastro de autoritarismo que persiste na sociedade portuguesa. Na verdade, não é necessário incitamento activo vindo de cima (leia-se, do poder político), para que nas mais diversas esferas se assista ao exercício de autoridade com escassa cultura democrática. Há uma rede de micropoderes, que se encontra difundida na nossa sociedade e que não nasce necessariamente do centro. Além do mais, em democracia, o autoritarismo é como o tango, precisa de pelo menos dois para existir. Ou seja, o exercício autoritário do poder requer que uma das partes exerça um constrangimento activo, mas necessita também que haja uma predisposição social e individual para aceitá-lo.
O exemplo do anúncio da RDP que acabou por ser suspenso é elucidativo. Para que nos tenha sido possível ver o vídeo, foi necessário que, pelo menos, uma equipa de criativos numa agência, um director criativo, uma jornalista, um actor, responsáveis do marketing e administradores numa empresa pública tenham participado na produção do filme. Ora não deixa de ser surpreendente que a nenhum dos participantes tenha ocorrido que a mensagem era no mínimo questionável e que revelava um desrespeito pelo direito à manifestação, que faz parte do código genético de qualquer democracia.
Na semana passada, a revista "Visão" traçava um perfil da directora da DREN. A ser verdade o que publica o jornalista Miguel Carvalho, deve ser difícil encontrar um exemplo tão representativo da persistência de uma cultura autoritária, baseada em micropoderes na administração pública. Das ameaças de processos disciplinares, passando pela impaciência perante a burocracia (que ainda assim é o que nos protege muitas das vezes da discricionariedade) e a opção por uma "gestão flexível" (que tende a ser baseada no princípio do "quero, posso e mando", que confunde autoritarismo com eficácia), até aos pedidos de anonimato nas declarações ao jornalista por "receio de represálias", estão lá todos os elementos de um exercício de funções públicas pouco consentâneo com a democratização do poder.
Perante estes casos, o Governo tem invariavelmente a mesma atitude: sublinha, com justiça, que não tem responsabilidade directa nos actos e, com legitimidade, sustenta que não interfere na autonomia, nuns casos das polícias, noutros dos tribunais, e ainda noutros do serviço público de televisão e rádio. Mas será que nos podemos dar como satisfeitos com esta atitude? Numa sociedade em que persiste uma cultura autoritária, com pequenas tiranias quotidianas, é possível à esfera política assobiar para o lado, como se nada se passasse?
O autoritarismo de vão-de-escada não se intensificou com este Governo, é apenas a outra face da democracia portuguesa e um lastro da ditadura que não foi extirpado da sociedade portuguesa. Mas precisamente por isso, é necessária uma pedagogia que o contrarie activamente. Há boas razões para que os ministros, pelas funções que exercem, mantenham reservas nas críticas à atitude de um magistrado, de um grupo de polícias, ou até da administração de uma empresa pública. Essa reserva preserva a autonomia institucional, que é algo de que depende também a democracia, mas é estranho que o PS, partido que suporta o Governo, adopte a mesma atitude, escolhendo o silêncio, quando deveria optar pela pedagogia democrática. O silêncio é aliás uma forma passiva de dar respaldo social ao autoritarismo de vão-de-escada.
publicado no Diário Económico.
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