terça-feira, janeiro 23, 2007

Quando o melhor é fugir

A decisão do Tribunal de Torres Vedras, condenando o Sargento Luís Gomes a prisão por sequestro tem indignado o País. O caso não é para menos, nele condensam-se não apenas muitas das questões sensíveis em torno da adopção de menores, como também sinais de degradação do sistema judicial português.
Os factos são conhecidos: a criança, que agora completa cinco anos, foi dada, ainda que sem cobertura legal, para adopção quando tinha três meses, tendo sido perfilhada pelo Pai biológico apenas com um ano de idade, sendo que o poder paternal só lhe foi atribuído quando já tinha dois anos e meio. Perante estes factos, o que importava saber é se há alguma razoabilidade em desenraizar-se uma criança aos dois anos e meio, entregando-a a um Pai que, pelo menos durante um ano, andou, no mínimo, dividido entre recusar o nascimento ou duvidar da paternidade. Hoje, com cinco anos, a questão só se agudiza.
Face a este quadro, o Tribunal de Torres Novas, em lugar de se questionar sobre o que teria acontecido à criança se não tivesse aparecido a família adoptiva, preferiu “provar” que o Sargento Luís Gomes e a mulher, ao tratarem-na como filha (algo que os pais biológicos não quiseram fazer), cometeram um conjunto de ilegalidades tão grave que não apenas a tutela desta lhes deve ser retirada, como o melhor ainda é serem presos por sequestro. Esta decisão esquece, contudo, um princípio elementar, que não precisa de estar escrito em nenhuma lei: quando está em causa a responsabilidade pela paternidade, não há lugar para segundas oportunidades – nomeadamente quando a criança já se encontra numa família que lhe proporciona um ambiente saudável. A partir desse momento, a prioridade absoluta deve ser dada aos interesses da criança. Numa criança com dois anos e meio, o que havia a avaliar era se a família adoptiva desempenhava bem o seu papel.
Perante o desenrolar do processo, a família tomou duas decisões. Primeiro, a mãe escondeu-se em parte incerta com a criança. Depois, o pai ofereceu-se à justiça. Foi uma decisão não apenas corajosa, como racional. A alternativa seria desenraizar a criança e envolvê-la num vai e vem de poder paternal que obedeceria aos tempos demasiadamente lentos da justiça e nunca aos tempos do desenvolvimento dos afectos.
O leitor menos céptico dirá – no fim, tudo se resolverá e o mais provável é um Tribunal superior acabar por dar razão à família adoptiva, pelo que o mais acertado teria sido agir em conformidade com as sentenças, entregando a criança ao pai biológico, ficando a aguardar por decisões posteriores. O problema é que, quando chegasse a decisão razoável, seria demasiado tarde, pois há danos que não podem ser ressarcidos – à cabeça, a instabilidade emocional que resultaria para a criança se tal opção tivesse sido tomada.
O caso do Sargento Gomes é mais um exemplo, particularmente mediático é certo, do estado de degradação a que chegou o nosso sistema de justiça. Um sistema com tempos desadequados e com demasiados agentes que fazem dos tribunais palcos para os seus exercícios gratuitos de poder, com total ausência de bom senso e que espelham nas suas sentenças enviesamentos de carácter, condimentados com desconhecimento dos princípios basilares do Estado de Direito, tal como plasmados na Constituição.
Por isso, caro leitor, como fica mais uma vez provado com o caso do Sargento Gomes, dou-lhe um conselho: quando tiver um problema judicial e, se for inocente, não confie no funcionamento da justiça. O melhor que tem a fazer é fugir. Fuja e ganhe tempo; fuja e evite estabelecer contacto com um juiz de primeira instância (pois, infelizmente, nem todos têm doses mínimas de bom senso); fuja e espere por uma decisão sensata de um tribunal superior; fuja e proteja-se a si e à sua família. Trata-se de uma opção não só racional, como avisada. O que não pode deixar de nos recordar que há poucas coisas simultaneamente mais assustadoras e graves para o funcionamento de uma sociedade decente.
publicado no Diário Económico.

terça-feira, janeiro 09, 2007

A maravilha de Portugal

Está a decorrer, através de votação na internet, um concurso para apurar as 7 novas maravilhas do mundo (2200 anos depois da escolha inicial) e, em simultâneo, as 7 maravilhas de Portugal. Sem que nada o obrigasse, entre as 77 maravilhas portuguesas nomeadas, todas elas são fruto da construção humana. Acontece que a verdadeira maravilha que o País tem para apresentar, capaz de competir à escala mundial, ficou esquecida: a sua faixa costeira. Essa, contudo, não resultou da construção humana. Pelo contrário, a mão humana tem-se empenhado activamente em destruí-la.

Por uma sinistra coligação de inércia e desarticulação do poder central, desinteresse das populações e terrorismo urbanístico do poder local, tudo temperado por uma ideia perversa de progresso, a costa portuguesa tem sido paulatinamente destruída. Do Norte a Sul, os exemplos de verdadeiras maravilhas destruídas pela acção do homem estão aí para nos envergonhar enquanto País. Quando se procura finalmente intervir, é já demasiadamente tarde. Como se não bastasse, nem sequer somos capazes de aprender com os erros do passado. A tentação para destruir a Costa Alentejana, do mesmo modo que foi destruído o Algarve, é prova disso mesmo.

Esta tendência é tanto mais estranha quanto diversas comissões e planos de desenvolvimento reiteram o papel do Mar como recurso estratégico para Portugal e o turismo, que entre nós está muito associado à praia, como ‘cluster’ de excelência para o desenvolvimento do País. Acontece que estas prioridades chocam numa política de quase abandono da nossa faixa costeira.

Escrevo isto porque, 24 horas depois deste jornal chegar aos leitores, a probabilidade de acontecer mais um desastre na Costa da Caparica é muito elevada. Com uma ondulação prevista de dimensões significativas, que poderá atingir um pico de 4.5 metros por volta das seis da tarde, quase coincidindo com a preia-mar, o cordão dunar, que tem sido fustigado repetidamente nos últimos anos, voltará a correr sérios riscos.

A forma como o mar tem feito desaparecer a areia na Costa da Caparica é um espelho perfeito do que se tem passado um pouco por todo o país: erosão de praias e falésias e subida contínua do nível do mar. Mas o que se passa na Costa é fruto de um processo longo, que muito dificilmente pode ser corrigido agora (como tem sido assinalado, a retirada de areia da zona do Bugio para construir a Expo-98 terá sido a última machadada na estabilidade do cordão dunar da Costa da Caparica). Só para se ter ideia, enquanto decorrem obras infindáveis nos pontões, todos os dias, para minorar os danos, são colocadas mais de mil toneladas de areia nas dunas das praias a norte da Costa, tendo estas já recebido mais de 35 mil toneladas. O esforço tem sido inglório: cada vez que o mar sobe um pouco, a protecção do cordão dunar fica destruída, sendo necessário fazer uma nova. Uma medida paliativa, que um dia, não muito longe, deixará de fazer efeito.

Quantos países ocidentais têm a fortuna de ter a sua capital rodeada por um extenso areal, com um clima ameno quase todo o ano? Que em lugar de se valorizar esse potencial, se tenha escolhido, ao longo de muitas décadas, primeiro, a construção abarracada e o caos urbanístico e, depois, o abandono ambiental, é inaceitável. Provavelmente, não haverá muito a fazer hoje para salvar a Costa da Caparica, o que aliás só revela a nossa miopia nacional.

A história da Costa da Caparica é paradigmática do que tem acontecido na gestão do nosso litoral: ausência de uma intervenção preventiva atempada, que leva a que nos vejamos confrontados com casos extremos de degradação, perante os quais só são possíveis intervenções de emergência, que se limitam a remediar dinâmicas imparáveis. De pequeno desastre em pequeno desastre até ao inevitável desastre final. Que colectivamente tenhamos escolhido abandonar as maravilhas de Portugal, optando, por inércia ou acção, por um caminho assente na degradação do território, continua a ser, em pleno século XXI, sinal de que continuamos demasiadamente pobres.

publicado no Diário Económico.