terça-feira, abril 17, 2007

Um Governo de Doutorados

Se por acaso um politólogo marciano aterrasse em Portugal nas últimas semanas, ficaria surpreendido com a polémica em torno do percurso académico do primeiro-ministro. Habituado a comparar sistemas de Governo, olharia com espanto para o interesse dos ‘media’ no tema. Em bom rigor, se dedicasse três minutos de atenção ao assunto, não deixaria de ficar atónito com o paradoxo de um país que combina níveis de qualificação muito baixos com a monomania do tratamento deferencial assente em títulos académicos. Já se resolvesse analisar as qualificações dos membros do Governo, poderia pensar que tinha encontrado em terras lusas a concretização da República dos Reis-Filósofos, com que Platão havia “sonhado”.

Não é para menos. Dos dezasseis ministros que compõem o actual executivo, sete são doutorados, aos quais há que juntar outros cinco que, não o sendo, têm percursos académicos quase equiparáveis. O politólogo marciano poderia mesmo pensar que havia entre nós uma singularidade: ser doutorado seria condição necessária para ser ministro. Afinal, do que conhecia dos restantes Estados-membros, sabia que não seria fácil encontrar outro exemplo do género. A conclusão, a carecer de uma detalhada análise comparativa, parecia simples: Portugal, um dos países com níveis de qualificação mais baixos na Europa, era também o país europeu com o Conselho de Ministros mais qualificado.

À primeira vista, o dado parece ser positivo. Se concordarmos que as qualificações são um indicador razoável para aferir a competência de alguém, então, em Portugal, os melhores são escolhidos para governar.

Acontece que o indicador que apontava para uma incomum liderança de Portugal em ‘rankings’ internacionais, é, antes de mais, um sinal de fragilidade da democracia portuguesa. Se, ao contrário do que é norma nas democracias europeias, quem é escolhido para fazer parte do Governo tende a vir de fora da vida partidária, é porque algo de errado se passa com os partidos, que ou não são capazes ou não têm condições para cumprir uma das suas funções: “produzir” membros do Governo.

Esta singularidade levaria, de certo, o nosso marciano a formular uma hipótese: num contexto em que a classe política tem níveis de aprovação muito baixos, uma vez no poder, os primeiros-ministros tendem a rodear-se de não políticos para reforçar a legitimidade do Governo. A confirmar-se a hipótese, seria possível identificar dois efeitos interligados e igualmente nocivos para a institucionalização da democracia: a existência de actores que ocupam lugares contraditórios e um reforço da deslegitimação dos partidos.

Em primeiro lugar, os lugares contraditórios. O que se espera de um ministro é que faça a gestão política da área que tutela, traçando grandes linhas orientadoras para serem concretizadas pelos serviços. Ora, numa asserção que é válida para todas as competências, a gestão política aprende-se e treina-se, daí que seja expectável que os políticos sejam melhores a fazê-la. Não por acaso, nas democracias mais consolidadas, a política é algo que está entregue exclusivamente aos políticos. A alternativa é assistirmos a um vai-e-vem na ocupação de lugares, muitas das vezes contraditórios, em que temos políticos apresentados como especialistas técnicos a fazerem intervenções políticas transvestidas de verdades técnicas absolutas.

Depois, a deslegitimação dos partidos. Não foi difícil ao nosso alienígena concluir que os partidos e a vida política em geral não estão particularmente bem vistos aos olhos dos portugueses. O que lhe causou estranheza foi que os partidos reforçassem essa avaliação. Se quando investidos de responsabilidades governativas, a primeira coisa que os líderes partidários fazem é rodear-se de outros que não aqueles que os acompanharam na sua chegada ao poder, então por que razão hão-de os portugueses valorar positivamente a classe política?

Quando regressou, o politólogo marciano, mesmo tendo em conta o seu distanciamento face ao objecto de estudo, não deixou de ficar preocupado com aquilo a que assistiu. É que o tema das qualificações dos membros dos Governos é um bom indicador da qualidade de uma democracia. Não o é, contudo, por nenhuma das razões que ele viu ser discutida.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, abril 03, 2007

Uma questão de carácter

Não conheço nenhuma sondagem que, nos últimos tempos, tenha avaliado a popularidade de Maria José Nogueira Pinto. Mas a existir, arrisco apostar que estaria em alta. Não surpreende: como tem sido assinalado, a ex-dirigente de CDS tem um passado de autonomia, de defesa de convicções e por onde passou deixou a sua marca. Para ajudar, nas últimas semanas, foi vista como tendo sido vítima do lado mais negro da vida partidária – as disputas internas e processuais – e, depois, revelou um desapego ao poder incomum, ao abandonar o lugar de vereadora da Câmara de Lisboa (que tendo em conta a campanha personalizada que desenvolveu, era, de facto, seu). Tudo somado, é provável que, por agora, os níveis de aprovação de Maria José Nogueira Pinto sejam elevados.

Contudo, o exemplo de Maria José Nogueira Pinto não tem nada de exemplar. É antes revelador da degradação da vida pública e política aos olhos dos portugueses. Poucos casos condensam de modo tão preciso a debilidade do nosso sistema político e mostram o caminho de desafectação crescente entre partidos e sociedade.

Antes de mais, a crescente fulanização e individualização da disputa política. Os incidentes internos ao CDS servem para fortalecer essa tendência. De uma assentada, expõe a todo o país o nível de degradação que é possível alcançar numa eleição interna de um partido político e ajudam a descredibilizar – ainda um pouco mais, se tal é possível – o papel destes como instituições intermediadoras e representativas da sociedade. Perante o que se assiste, por que razão não hão-de os portugueses preferir, usando uma expressão muito popular, “votar em pessoas em vez de ideologias ou partidos”. Expressão que adquire um sentido redobrado quando aqueles que são vistos como os melhores se afastam dos partidos (um acto que tem como consequência imediata o reforço da já frágil credibilidade destas instituições).

A tendência para a fulanização da política é um sinal de fraca institucionalização da nossa democracia e traduz-se em instabilidade programática dos partidos e, de uma só vez, potencia a sua plasticidade ideológica e diminui a sua ancoragem social. Se não são os partidos a agregar interesses, dificilmente outra instituição o fará e se aqueles são entidades usadas de modo volátil para servirem o líder de cada momento, cada vez menos os portugueses se sentirão representados. Se o que cada vez mais conta são as pessoas e cada vez menos a organização, a tendência é para a pulverização e para a fragmentação. O que não nos levará colectivamente a bom porto.

Mas ao votar-se em pessoas e não em ideologias está-se, também, a abrir a porta para escolhas políticas baseadas em avaliações de carácter. Um caminho que permite todos os populismos. Antes de mais, porque não se conhecem formas credíveis de escrutínio público de caracteres. Pelo contrário, o risco é precisamente o de se produzirem resultados enviesados. Pelo mundo fora, nos mais diversos quadrantes políticos, abundam os exemplos de lideranças fortemente personalizadas e altamente populistas.

É evidente que Maria José Nogueira Pinto não representa, de modo algum, o lado perverso da política baseada nas “pessoas”. É precisamente por isso que é negativa a sua demissão. Pode parecer contraditório, mas na situação em que nos encontramos, o que os partidos precisam para se revigorarem é de pessoas que tenham autonomia, credibilidade, se movam por princípios estáveis e não por flutuações de conveniência e combinem essas características com vontade de poder. São cada vez mais raras nos nossos dias e em todo o espectro partidário essas pessoas, mas Maria José Nogueira Pinto reunia as condições necessárias. Do que virá no futuro do CDS – numa asserção que é válida para todos os partidos – não tenho a certeza que se possa dizer o mesmo. É por isso que perante o dilema que enfrentou, tenho pena que ela não tenha ficado. Compreendo que não o tenha feito. Era pessoalmente muito difícil, não duvido, mas era politicamente muito importante.

publicado no Diário Económico.