terça-feira, fevereiro 17, 2009

A política do carácter

Credibilidade, seriedade, trabalho, verdade. Nos últimos anos, estes termos tornaram-se estruturantes da disputa política, diluindo progressivamente a diferença baseada em distinções ideológicas.

A tendência tem-se acentuado. Dois casos recentes são bem ilustrativos: o cartaz da JSD que chama mentiroso ao primeiro-ministro e a iniciativa "Portugal de verdade" do PSD.

Num caso de modo explícito, noutro não tanto, a sugestão é clara: um dos campos afirma-se pela credibilidade e pela verdade, detendo o monopólio destas categorias. A verdade é naturalmente uma categoria ética louvável, mas como critério para a escolha tem como efeito um empobrecimento da disputa política, funcionando como obstáculo para a afirmação de projectos alternativos. Enquanto os partidos se afirmam pela verdade, evitam objectivamente a diferenciação e, em última análise, transformam a escolha política numa opção entre carácteres - entre quem mente e quem é fiel à verdade. Esta tendência tem vários problemas.

Um primeiro é o empobrecimento dos termos do debate político. O princípio-base da política é a diferença, a negação de que há uma verdade única sobre os factos. O que há são diferentes apropriações, igualmente verdadeiras, dos factos. Ao contrário do que sugeriu Cavaco Silva durante a campanha para as presidenciais, duas pessoas sérias com a mesma informação não têm de concordar. Pelo contrário, espera-se que discordem, alicerçadas num comprometimento com diferentes visões do mundo. Por isso, o recurso sistemático a categorias como verdade e credibilidade, que são categorias morais que remete para o carácter dos protagonistas, torna as escolhas indiferenciadas, não permitindo a mobilização em torno dos projectos enraizados ideologicamente em que devem assentar as preferências de sociedade. Quando a afirmação dos projectos partidários assenta na avaliação do carácter dos protagonistas, estamos perante o grau zero da política.

Sintomaticamente, entre nós, de cada vez que se inicia uma discussão eminentemente política ela é rapidamente substituída por um debate despolitizado. Veja-se como, nas últimas semanas, um debate político relevante - o papel da fiscalidade como instrumento para a promoção da redistribuição - foi rapidamente abandonado, sem que todos os campos políticos tentassem afirmar a sua posição, passe o pleonasmo, política. Com a natural excepção do PS que iniciou o debate e do CDS que não hesitou em posicionar-se criticamente face ao tema (apresentando, aliás, um conjunto de alternativas), os restantes partidos optaram por sublinhar ou a natureza eleitoralista da discussão ou a sua não exequibilidade. De posicionamento político, sobrou pouco. Exemplos deste tipo, envolvendo todos os partidos, não são difíceis de encontrar.

Em segundo lugar, as escolhas políticas baseadas em avaliações de carácter abrem caminho para todos os populismos. Desde logo porque não se conhecem formas credíveis de escrutinar no espaço público os carácteres. Aliás, o que se sabe é que a política baseada na superioridade de carácter resvala, frequentemente, para lideranças fortemente personalizadas, que estão na génese de populismos. De Chavez a Berlusconi, todos os populistas se afirmam pelo carácter exemplar das suas lideranças - exemplificado invariavelmente pelas mais diversas façanhas - e por estes serem detentores da verdade.

Não é preciso andar excessivamente atento para perceber que, nos dias que correm, a mobilização política em Portugal é particularmente baixa.

Num ano com três eleições num curto espaço de tempo e num contexto económico e social já de si muito complexo, este facto não pode deixar de ser visto com preocupação. Tem sido sugerido que esta desmobilização radica, em importante medida, no descrédito da classe política e na relação flutuante desta com a verdade. Contudo, não há nada que afecte tanto a mobilização política como a indiferenciação entre as ofertas partidárias ou a tentativa de, em lugar dos projectos políticos se apresentarem como alternativos, distinguirem-se com base no carácter dos seus protagonistas.

Se nada nos é dado a escolher e o que temos de fazer é optar, como se estivéssemos num plebiscito moral, entre personalidades, torna-se na verdade difícil encontrar uma boa razão para votar.
publicado no Diário Económico.

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Quem guarda os segredos?

A crer nos jornais do fim-de-semana, nuns casos, os procuradores do caso Freeport temem estar a ser vigiados pelo SIS, noutros, o recurso à ironia do procurador-geral da República numa reunião do Conselho Superior do Ministério Público, apelando ao SIS para que este o auxiliasse na investigação das fugas de informação, terá sido suficiente para lançar a suspeição. Versões à parte, a violação do segredo de justiça voltou a dominar as agendas mediáticas.

A violação do segredo de justiça remete para o cruzamento entre duas instituições nucleares das sociedades livres: uma justiça fiel às liberdades e uma comunicação social independente. É precisamente pelo carácter nuclear destas instituições que o modo perverso como, ao violarem o segredo de justiça, se articulam é gravoso para o Estado de direito. De cada vez que temos acesso a uma informação parcelar, descontextualizada ou até materialmente falsa proveniente de um processo judicial que, por sua vez, é amplificada pela comunicação social, estamos, de uma assentada só, a deitar fora a presunção da inocência, o direito ao bom nome, o princípio do contraditório, elementos que estão na base de uma sociedade decente.

O segredo de justiça, como todas as outras garantias de um Estado de direito, tem um fim preciso: garantir que um inocente pode defender-se e tem direito a fazê-lo com condições justas.

É por isso que a tolerância que revelamos face à violação sistemática do segredo de justiça revela, em última análise, uma assinalável tolerância perante a corrosão do Estado de direito, das liberdades e das garantias. As sociedades que cedem nestas matérias estão disponíveis para ceder em quase tudo.

O que fazer perante um contexto em que não apenas o segredo de justiça é violado sistematicamente, mas no qual aceitamos colectivamente que o debate político se centre em informação que resulta de fugas provenientes dos operadores judiciais?

Há na verdade três soluções possíveis e o caminho a seguir tem de assentar numa combinação entre elas: a auto-regulação dos media; a penalização das violações; e o desenvolvimento de mecanismos de controlo e investigação das fugas.

A capacidade de um operador judicial retirar uma informação de um processo é condição necessária a uma violação do segredo de justiça, mas não é suficiente. A violação só é grave porque é amplificada pela comunicação social. A melhor forma para contrariar esta tendência é a auto-regulação dos media. Contudo, há manifestos limites a esta opção. A competição crescente entre media num contexto económico difícil tem criado uma tendência para a suspensão de princípios deontológicos do jornalismo. Se a isto juntarmos a fragilidade com que é exercida a profissão de jornalista, não poderemos esperar muito dos mecanismos de auto-regulação.

O segundo caminho é a penalização de facto da violação do segredo de justiça. Na última reforma penal ficou claro que o segredo de justiça vincula todos os que contactem com processos em que aquele vigora. Ou seja, quem publicar matéria em segredo de justiça deve também ser punido, sendo que a moldura penal vai até dois anos de prisão. Acontece que apesar das alterações legais, a prática de impunidade tem-se mantido, como se nada houvesse mudado.

Finalmente os mecanismos de controlo e investigação das violações do segredo de justiça. De facto, em tom irónico ou não, o PGR, ao reconhecer a sua dificuldade em investigar fugas de informação, está, implicitamente, a apontar o caminho para resolver o problema.

Um caminho que assenta, em parte, no aprofundamento do processo de desmaterialização dos processos judiciais. A informatização permite, por um lado, saber quem acedeu aos processos e em que momento o fez e, por outro, ao contrário do método tradicional da fotocópia, que não deixa rasto, a origem da informação que é "passada" informaticamente é mais facilmente detectável. A generalização dos sistemas informáticos ao processo penal tenderá a dificultar a vida aos promotores de fugas.

Mas, como lembra o apelo irónico ao SIS para vir em auxílio da PGR, um dos problemas é que quem investiga as violações do segredo de justiça é o mesmo MP de onde podem ser provenientes muitas dessas fugas. Ou seja, quem devia guardar o segredo e frequentemente não o faz, é também quem apura as violações ao mesmo. Os resultados são conhecidos: por incapacidade ou por falta de vontade, a culpa tem morrido solteira. O que sugere que talvez seja altura de levar a sério as palavras de Pinto Monteiro e não deixar o MP sozinho a investigar as fugas de informação.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, fevereiro 03, 2009

Manual de instruções para campanhas negras

Há um equívoco muito generalizado: é mais fácil desenvolver uma campanha negra envolvendo um vizinho, um colega de trabalho ou mesmo um familiar. Nada de mais errado. Não hesite, pense em grande. A evidência empírica revela que uma campanha bem orquestrada pode ser eficaz se dirigida a um artista de televisão com particular notoriedade ou até mesmo, pasme-se, a um político.

Após criteriosa selecção do alvo, há que passar à fase a que os especialistas chamam de contextualização. Esta, isoladamente, não produz qualquer efeito - razão porque foi, durante tanto tempo, menosprezada. Contudo, como revelam diversos casos de sucesso, é decisiva. Deve agora proceder à escolha da natureza da campanha. As acusações mais seguras continuam a ser o enriquecimento ilícito e tudo o que remeta para comportamentos sexuais. Se optar pela segunda hipótese, tenha presente que relações extra-conjugais têm taxas de sucesso marginais. Pelo contrário, há evidência empírica que demonstra a robustez de campanhas assentes em alegações de relações homossexuais ou até comportamentos sexuais desviantes. No passado, havia dois instrumentos preferenciais para a contextualização: as cartas anónimas e o "ouvi dizer". Se bem que estes mecanismos ainda revelem assinalável eficácia, as novas tecnologias abriram novas possibilidades. Escreva um ‘email' e ponha a circulá-lo. As caixas de comentários dos jornais ‘online', fóruns e ‘blogs' têm-se revelado particularmente úteis.
Seja paciente e aguarde dois, três anos. Não suspenda a sua actividade, aproveite este período para estabelecer alguns contactos (junto de "amplificadores selectivos) e, não menos importante, pesquise informação sobre o seu alvo, bem como os seus familiares. Recorra a um motor de busca na ‘net' e, se tiver recursos, utilize um serviço de ‘clipping'. A informação disponível vai surpreendê-lo. Nesta altura tem de insinuar-se junto dos "amplificadores selectivos". Há tipos preferenciais de amplificadores com quem convém desenvolver uma boa relação: um jornalista e alguém, no mínimo, com acesso à fotocopiadora no Ministério Público e/ou na Polícia Judiciária.

Chegou agora a fase decisiva. É o momento para a campanha se tornar visível. Se a contextualização tiver decorrido bem, até você se vai surpreender com os níveis de credulidade. Mesmo um facto com escassa solidez revelar-se-á verosímil. Não se preocupe muito com o modo como esse facto vai ser posto à prova. O mais provável é que não o seja e, caso isso aconteça, se ele tiver sido devidamente amplificado, pouco importa que venha a ser desconsiderado. O resultado pretendido já foi alcançado. Assim que tiver feito chegar a denúncia às autoridades, coloque rapidamente o "seu" jornalista ao corrente.

Tem agora uma semana para mobilizar toda a informação que entretanto recolheu e plantá-la criteriosamente junto dos media. Não se preocupe em estabelecer relações de causa e efeito, basta associar factos. Vai ver que funciona. Há também um princípio elementar: ainda que continue a privilegiar o jornalista que primeiro deu voz à campanha, é agora importante diversificar. Há um mecanismo que se tem revelado muito conseguido: dar uma notícia parcialmente a um jornal e completá-la com informação à noite numa televisão. Por esta altura, deverá existir um caldo cultural propício a envolver familiares. Avance.

O essencial do seu trabalho está feito. Tirando algumas intervenções cirúrgicas, a competição pelas audiências entre os media encarregar-se-á de fazer o resto. Assistirá a um fenómeno curioso: as notícias serão dadas várias vezes, como se se tratasse de novidade, mesmo que tenham sido desmentidas, e os órgãos de comunicação amplificarão as notícias uns dos outros, sem qualquer critério. Neste momento, o nome do seu alvo deve surgir invariavelmente associado a expressões como "suspeito", "arguido", "implicado", "envolvido". Ainda que na verdade não haja nenhum indício, é o momento em que os comentadores estarão a falar da fragilidade em que se encontra, da necessidade de se explicar ou, até, de colocar o lugar à disposição. Pode, em casa, assistir confortavelmente ao desenrolar da campanha.

Apesar da natureza simples deste tipo de campanha, os mais temerosos têm procurado saber quais são os riscos para os autores morais. A literatura refere alguns casos que se revelaram problemáticos. Contudo, são excepções e só foram deslindados muito tempo depois. O "protocolos dos Sábios de Sião", o caso Dreyfus e o de George Edalji em Inglaterra são disto exemplo. Mais recentemente, na Bélgica, as autoridades revelaram particular celeridade em desmontar a campanha movida contra o ex-ministro Elio di Rupo. Mas, para quem opera a partir da Europa do Sul, não há motivos para preocupação. A coligação entre aqueles que defendem o primado do Estado de direito é de tal modo frágil que, facilmente, serão derrotados pela sólida união entre péssimo jornalismo e investigação negligente.

publicado no Diário Económico.