terça-feira, dezembro 26, 2006

Segredos e revelações

E, de repente, o que se encontrava adormecido, despertou. O processo “apito dourado” acordou da profunda letargia em que tinha caído. Bastou um livro para que ganhasse nova energia. Uma vez mais, as expectativas são grandes, o ruído muito e, inevitavelmente, o perigo justicialista espreita.

Uma coisa é clara: do mesmo modo que a percepção generalizada de que há uma teia longa que envolve futebol, autarquias locais e financiamentos e enriquecimentos ilícitos mina a credibilidade do Estado de direito democrático, também a tentação de julgar apressadamente, esquecendo o direito e usando a comunicação social populista como instrumento de legitimação nos leva por caminhos ínvios. Caminhos que, aliás, se tornam particularmente perigosos quando os arautos da luta contra a corrupção, à primeira oportunidade, se acomodam no regaço dos tablóides. Velhos hábitos de longas marchas.

Nisto, não deixa de ser trágico que seja necessário uma sequela de mau gosto de “Tudo Bons Rapazes” de Martin Scorcese – onde um esquema mafioso só se desmorona quando um arrependido, mas igualmente envolvido, resolve contar tudo - para que se comecem a desenlaçar os meandros do futebol português (será só do futebol?).

Futebol é futebol, o que ajuda a explicar o menor impacto das revelações da assessora de imprensa do ex-Procurador Souto Moura em entrevista à Visão, quando comparado com o livro de Carolina Salgado. Ainda assim, importa ter presente que não estamos a falar do Gondomar S.C., mas sim, da porta-voz do Procurador-Geral da República, responsável máximo de uma instituição nuclear do Estado de Direito.

Para que melhor se perceba esta trama não-desportiva, vale a pena recuar um pouco no tempo. No Verão de 2004, um conjunto de cassetes sobre o processo Casa Pia foi alegadamente roubada a um alegado jornalista do Correio da Manhã e depois transcritas n’O Independente. Nas cassetes, o ex-director da Polícia Judiciária, Adelino Salvado, e a porta-voz de Souto Moura, Sara Pina, entretiam-se, em off, a dar informações difamatórias, desconhecendo que estavam a ser gravados. Na sequência destas revelações, ambos se demitiram. Na altura, Souto Moura, naquele seu jeito viscosamente fugidio, logo se apressou a lavar daí as suas mãos, dizendo que nada tinha a ver com o que havia feito a sua assessora – chegou mesmo a fazer um mea culpa em que se considerava culpado “por não ter vigiado suficientemente aquela senhora”.

Pois passados dois anos e meio, em entrevista à Visão, a ex-assessora veio dizer de sua justiça: que não, não agiu autonomamente, que articulava tudo com o seu superior hierárquico (”o Procurador-Geral supervisionava e acompanhava o meu trabalho e os contactos estabelecidos com a comunicação social. Habitualmente, eu reunia com ele várias vezes ao dia para lhe dar conta do que se ia passando e obter as informações que devia dar”) e que este, aliás, muitas das vezes o fazia por escrito, em manuscritos que a ex-assessora guarda. Notável.

A conclusão é cristalina. Mais uma vez – o que é recorrente quando se fala de Souto Moura – alguém está a mentir: ou o ex-PGR quando afirmou que a sua assessora exorbitou as suas funções, ou esta, quando afirma que agia em articulação com aquele.

Em qualquer caso, convém não esquecer que estes incidentes não remetem meramente para o mundo do futebol, mas para dimensões bem mais importantes da nossa vida colectiva, como sejam as relações do Ministério Público com o sistema político.

Hoje, o que está em causa já não é apenas apurar a verdade para ressarcir aqueles que viram as suas vidas devassadas e o seu bom nome enlameado, é também perceber de que modo o processo Casa Pia serviu para interpelar as relações entre o sistema político e o sistema de justiça. Compreender qual foi o papel desempenhado pelo ex-PGR em todo este processo é, a este propósito, decisivo. E, convenhamos, a entrevista da sua ex-assessora de imprensa serve para adensar as nuvens em torno da sua acção: estamos perante alguém que se revelou inábil na gestão de um processo complexo e mediático ou, pelo contrário, face a um agente activo no processo de degradação institucional em Portugal? Um dia saber-se-á.

publicado no Diário Económico.

terça-feira, dezembro 12, 2006

A flexigurança em Portugal

Como poucos países no espaço europeu, Portugal está tradicionalmente muito exposto aos exemplos estrangeiros de políticas de sucesso. Contudo, estes, com frequência, ou acabam por não ser transpostos por impossibilidade material e/ou institucional ou, quando o são, isso acontece com baixa eficácia. Correr-se-á o mesmo risco com a flexigurança?

Quando se fala de flexigurança, a referência é, na maior parte dos casos, a experiência dinamarquesa, na qual parceiros sociais e Estado acordaram num ‘trade-off’ em que a flexibilização das relações laborais foi trocada por maior protecção no desemprego e maiores possibilidades de qualificação. A flexigurança é, desse ponto de vista, uma política típica de “terceira-via” ‘avant la lettre’, que faz parte de um repertório de políticas públicas mais amplo: popularizado pelo New Labour, mas introduzido primeiro na Dinamarca e na Holanda (caso que tem mais pontos de comum com a situação nacional – a este propósito é particularmente actual o livro de Jelle Visser, ‘The dutch miracle’).

Tal como todas as políticas públicas que se revelam virtuosas, a flexigurança funciona, não em abstracto, mas perante problemas de natureza específica e quando estão reunidas determinadas condições institucionais e materiais.

Ora, não só a natureza dos problemas do mercado de trabalho português, como da nossa economia, é diferente do da Dinamarca de há uma década, como as condições que então estiveram presentes, estão longe de estarem reunidas entre nós.

Em primeiro lugar, uma cultura institucional que valoriza a busca de soluções partilhadas. Portugal, pese embora algumas excepções – por isso mesmo mais notáveis –, como a do recente acordo sobre salário mínimo, caracteriza-se por ter um padrão de diálogo social adversativo e pouco propenso aos pactos. A isto acresce que, contrariamente à experiência escandinava, em que a flexigurança radicou mais em pactos assinados ao nível sectorial ou de empresa, a capacidade de empregadores e trabalhadores se entenderem autonomamente é fraca e quando acontece muito circunscrita a matérias que se prendem com o tempo de trabalho.

Em segundo lugar, a componente segurança custa dinheiro e todo o padrão recente de transformação nas políticas públicas portuguesas não aponta para que haja folga orçamental, muito menos em sede de Segurança Social, para financiar este ‘trade-off’.

Isto não quer dizer que Portugal não tenha de transformar o seu modelo de relações laborais e ainda menos que não deva olhar para o modo como outros países ultrapassarem os seus bloqueios. Pelo contrário: Portugal precisa de flexibilizar muitas dimensões das suas relações de trabalho – o que não deve ser confundido com liberalização dos despedimentos –, essencialmente aquelas que promovem de facto a adaptabilidade das empresas, libertando-as de algumas formas de rigidez que não são suportáveis face às transformações que ocorreram na economia. Se nada mais, a atracção do investimento estrangeiro a isso obriga.

Mas, isto não nos deve fazer esquecer que um dos principais problemas que enfrenta o mercado de trabalho em Portugal continua a ser o da distância que vai da norma escrita (muito protectora) à prática social (de facto muito precária). Rígidos na lei, flexíveis na prática, acabamos por viver no pior de dois mundos.

Tem por isso toda a razão, Poul Rasmussen quando, no congresso do Partido Socialista Europeu, afirmou que o modelo de flexigurança deve ser seguido não como uma cópia, mas como um roteiro, sensível às especificidade de cada País.

Neste sentido, mais do que procurar aplicar a experiência de flexigurança a Portugal (como se fosse um modelo pronto-a-vestir), é mais interessante valorizar o método, aplicando um roteiro que contamine as relações laborais portuguesas com o princípio das soluções negociadas com custos repartidos, nomeadamente procurando um ‘trade-off’ entre flexibilidade e efectividade. Um modelo de “flexictividade” que visaria aproximar a norma das práticas sociais e tornar o mercado de trabalho mais adaptável, mas, em algumas dimensões, menos flexível do que de facto é e mais flexível do que aparenta ser.

publicado no Diário Económico.