Uma grande transformação
“Não existe essa coisa da sociedade”, afirmou Margaret Thatcher, num conhecido epitáfio para o neoliberalismo dos anos oitenta, para depois concluir que “só existem indivíduos e famílias”. A afirmação não pode deixar de ecoar hoje, quando a espiral de austeridade está a provocar uma transformação social, como não ocorria desde o pós-guerra.
Talvez nunca como agora tenha sido tão adequado falar de ‘desenraizamento social da economia’, o risco que Karl Polanyi identificava como traço distintivo das economias políticas dos anos 30. Como sublinhava em “A Grande Transformação” (um livro escrito durante a Guerra e cuja anunciada edição portuguesa não poderia ser mais oportuna), até ao capitalismo moderno, nenhuma outra sociedade havia sido auto-regulada por um padrão institucional assente no valor de mercado, mantendo-se imune à interferência de qualquer outro factor externo. Com consequências: em lugar de a economia estar incorporada nas relações sociais, foram as relações sociais que passaram a estar incorporadas na economia, subordinando as opções políticas ao mercado e provocando um deslassar da sociedade. Lendo, hoje, Polanyi, uma transformação parece garantida, conheceremos um outro mundo no fim da austeridade: com menos sociedade e ainda menos comunidade.
Em Portugal, onde o Governo não esconde a ambição de ir além da Troika, a ruptura só poderá ser mais intensa. Uma coisa é o necessário controlo da despesa, outra, bem diferente, é, com esse pretexto, brincar com o fogo, promovendo um enfraquecimento da comunidade e uma diminuição da soberania. Como lembrava Helena Garrido esta semana no Jornal de Negócios, “Portugal tem de existir”.
Eis dois exemplos que vão ter efeitos irreversíveis e que são, de facto, ameaças à existência de um país soberano, assente numa comunidade de pertença.
O primeiro é a construção de um Estado Social de mínimos, dirigido aos mais pobres. Desde o ‘passe social’ com descontos ultra-exclusivos à ASAE ter deixado de inspeccionar lares e creches, passando pelo que se anuncia no acesso à saúde, abundam os exemplos em que do excesso de gratuitidade se evoluiu para uma retirada de benefícios às classes médias baixas. Esta opção esquece que os direitos sociais fazem parte do código genético da nossa democracia e que são um mecanismo de legitimação política. Pura e simplesmente não existem democracias sem integração das classes médias.
O segundo é um programa de privatizações que aliena uma fatia importante do que resta da soberania. Vender ao desbarato empresas do sector energético ou das águas não é comparável com o processo de privatizações que ocorreu nos anos oitenta – e que obedeceu a uma necessária liberalização – é, sim, uma ameaça à independência do país, sem que se vislumbrem vantagens.
Se este Governo fizer o que, levado pelas suas ilusões ideológicas pueris, ameaça, daqui a uns anos saberemos qual é a diferença entre ter uma comunidade que forma um país ou termos um conjunto de indivíduos e famílias.
publicado no Expresso de 3 de Setembro
Talvez nunca como agora tenha sido tão adequado falar de ‘desenraizamento social da economia’, o risco que Karl Polanyi identificava como traço distintivo das economias políticas dos anos 30. Como sublinhava em “A Grande Transformação” (um livro escrito durante a Guerra e cuja anunciada edição portuguesa não poderia ser mais oportuna), até ao capitalismo moderno, nenhuma outra sociedade havia sido auto-regulada por um padrão institucional assente no valor de mercado, mantendo-se imune à interferência de qualquer outro factor externo. Com consequências: em lugar de a economia estar incorporada nas relações sociais, foram as relações sociais que passaram a estar incorporadas na economia, subordinando as opções políticas ao mercado e provocando um deslassar da sociedade. Lendo, hoje, Polanyi, uma transformação parece garantida, conheceremos um outro mundo no fim da austeridade: com menos sociedade e ainda menos comunidade.
Em Portugal, onde o Governo não esconde a ambição de ir além da Troika, a ruptura só poderá ser mais intensa. Uma coisa é o necessário controlo da despesa, outra, bem diferente, é, com esse pretexto, brincar com o fogo, promovendo um enfraquecimento da comunidade e uma diminuição da soberania. Como lembrava Helena Garrido esta semana no Jornal de Negócios, “Portugal tem de existir”.
Eis dois exemplos que vão ter efeitos irreversíveis e que são, de facto, ameaças à existência de um país soberano, assente numa comunidade de pertença.
O primeiro é a construção de um Estado Social de mínimos, dirigido aos mais pobres. Desde o ‘passe social’ com descontos ultra-exclusivos à ASAE ter deixado de inspeccionar lares e creches, passando pelo que se anuncia no acesso à saúde, abundam os exemplos em que do excesso de gratuitidade se evoluiu para uma retirada de benefícios às classes médias baixas. Esta opção esquece que os direitos sociais fazem parte do código genético da nossa democracia e que são um mecanismo de legitimação política. Pura e simplesmente não existem democracias sem integração das classes médias.
O segundo é um programa de privatizações que aliena uma fatia importante do que resta da soberania. Vender ao desbarato empresas do sector energético ou das águas não é comparável com o processo de privatizações que ocorreu nos anos oitenta – e que obedeceu a uma necessária liberalização – é, sim, uma ameaça à independência do país, sem que se vislumbrem vantagens.
Se este Governo fizer o que, levado pelas suas ilusões ideológicas pueris, ameaça, daqui a uns anos saberemos qual é a diferença entre ter uma comunidade que forma um país ou termos um conjunto de indivíduos e famílias.
publicado no Expresso de 3 de Setembro
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