A degradação do serviço público
O modo como do ‘caso Bairrão’ evoluímos para as notícias sobre a violação de segredos dos serviços de informação revelou-nos uma novela inquietante, mas que não tem nada de excepcional no contexto de degradação das funções do Estado e do serviço público.
Os serviços de informação são um domínio sobre o qual deveríamos saber pouco e ao qual o princípio – entretanto feito sacrossanto – da transparência não se deveria aplicar. Nas últimas semanas, ficámos a saber várias coisas que não deveriam acontecer.
É inquietante que um ex-diretor das secretas envie informação, que decorre do trabalho dos serviços, a partir de casa – tanto mais que quem trabalhou no SIS ou no SIED fica vinculado ao segredo de Estado para sempre. Do mesmo modo que é inquietante imaginarmos que há troca de informação entre serviços de informação e empresas privadas que não é sujeita a um protocolo apertado. É o contexto adequado para, em lugar de negócios legítimos e com interesse estratégico entre instituições e empresas, termos trocas entre pessoas e empresas. É neste terreno que medra a corrupção. É não menos inquietante percebermos que um chefe das secretas que escolheu demitir-se nas vésperas de uma Cimeira da NATO invocando como justificação cortes orçamentais, na verdade, o que pretendia era melhorar o seu orçamento pessoal.
Mas, convenhamos, não há nada de excepcional no que se passou agora nos serviços de informação. A transumância do chefe do SIED para um grupo de comunicação social é apenas a versão extrema do que já se passa em muitos outros sectores da administração pública, com o picante adicional de se tratar de alguém que conhece segredos. Tal como os pilotos da Força Aérea que beneficiam da formação militar para irem ganhar dinheiro na aviação comercial ou os membros do governo que vão trabalhar para o sector privado nas áreas que tutelaram, o ex-diretor dos serviços de informação trocou a ética do serviço público pelo vil metal.
Estes episódios são também a outra face da degradação deliberada das funções do Estado e implicam deterioração da soberania nacional. No passado, uma carreira na administração pública era alicerçada num ethos de serviço, hoje, o desmantelamento e a deslegitimação do Estado – a outra face da espiral de austeridade – só podem culminar em episódios como este. É particularmente grave que também nos serviços de informação se assista a esta degradação da coisa pública. Até porque, é sabido, demora décadas a solidificar a autoridade do Estado e a construir um serviço de informações eficaz. Mas é preciso muito pouco tempo para fazer ruir a capacidade do Estado e para desmantelar um serviço de informações.
Por absurdo que possa parecer, ainda assim, esta novela acabará por ter um efeito positivo. Em lugar das razias e das mudanças radicais que pareciam inspirar o novo Governo, agora, tornar-se-á inevitável que os serviços de informação sejam devolvidos à discrição, ao consenso e ao gradualismo.
publicado no Expresso de 6 de Agosto
Os serviços de informação são um domínio sobre o qual deveríamos saber pouco e ao qual o princípio – entretanto feito sacrossanto – da transparência não se deveria aplicar. Nas últimas semanas, ficámos a saber várias coisas que não deveriam acontecer.
É inquietante que um ex-diretor das secretas envie informação, que decorre do trabalho dos serviços, a partir de casa – tanto mais que quem trabalhou no SIS ou no SIED fica vinculado ao segredo de Estado para sempre. Do mesmo modo que é inquietante imaginarmos que há troca de informação entre serviços de informação e empresas privadas que não é sujeita a um protocolo apertado. É o contexto adequado para, em lugar de negócios legítimos e com interesse estratégico entre instituições e empresas, termos trocas entre pessoas e empresas. É neste terreno que medra a corrupção. É não menos inquietante percebermos que um chefe das secretas que escolheu demitir-se nas vésperas de uma Cimeira da NATO invocando como justificação cortes orçamentais, na verdade, o que pretendia era melhorar o seu orçamento pessoal.
Mas, convenhamos, não há nada de excepcional no que se passou agora nos serviços de informação. A transumância do chefe do SIED para um grupo de comunicação social é apenas a versão extrema do que já se passa em muitos outros sectores da administração pública, com o picante adicional de se tratar de alguém que conhece segredos. Tal como os pilotos da Força Aérea que beneficiam da formação militar para irem ganhar dinheiro na aviação comercial ou os membros do governo que vão trabalhar para o sector privado nas áreas que tutelaram, o ex-diretor dos serviços de informação trocou a ética do serviço público pelo vil metal.
Estes episódios são também a outra face da degradação deliberada das funções do Estado e implicam deterioração da soberania nacional. No passado, uma carreira na administração pública era alicerçada num ethos de serviço, hoje, o desmantelamento e a deslegitimação do Estado – a outra face da espiral de austeridade – só podem culminar em episódios como este. É particularmente grave que também nos serviços de informação se assista a esta degradação da coisa pública. Até porque, é sabido, demora décadas a solidificar a autoridade do Estado e a construir um serviço de informações eficaz. Mas é preciso muito pouco tempo para fazer ruir a capacidade do Estado e para desmantelar um serviço de informações.
Por absurdo que possa parecer, ainda assim, esta novela acabará por ter um efeito positivo. Em lugar das razias e das mudanças radicais que pareciam inspirar o novo Governo, agora, tornar-se-á inevitável que os serviços de informação sejam devolvidos à discrição, ao consenso e ao gradualismo.
publicado no Expresso de 6 de Agosto
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