Um gigantesco banco alimentar
Um dos mistérios da política portuguesa é o modo como níveis muito elevados de pobreza coexistem com a demagogia em torno do combate à pobreza. O novo governo, no seu programa frugal, ao mesmo tempo que em alguns aspectos não hesitou em meter o tão apregoado liberalismo na gaveta, decidiu conservar a retórica assistencialista, que se esperava fosse um excesso próprio de campanha eleitoral.
Ao longo do programa é sugerido que as políticas públicas de solidariedade social se transformem num gigantesco banco alimentar. Há nisto um enorme equívoco. Uma coisa são iniciativas muito meritórias da sociedade civil, mas naturalmente parcelares, outra é as políticas públicas assentarem numa lógica discricionária que reproduz princípios desadequados às respostas do Estado. No fundo, trata-se da diferença entre assistencialismo privado e direitos sociais públicos. Além do mais, o modo como o Governo quer associar prestações sociais e trabalho, em particular num momento de desemprego muito elevado, tem um efeito perverso sobre o mercado.
Apesar da ideia de pagar prestações sociais em vales ter desaparecido, a substituição de pagamentos em espécie por géneros mantém-se presente. Numa frase que faz recuar as políticas públicas portuguesas quatro décadas, é estabelecida uma hierarquia dos bens a distribuir aos pobres, uma espécie de ‘kit de sobrevivência’: “são prioritários, em termos de entrega às famílias, os seguintes itens: alimentação, vestuário e medicamento”. Para quem apregoa tanto o liberalismo, dificilmente se encontraria algo tão iliberal como esta menorização dos pobres e a limitação brutal da liberdade de escolha implícita nesta frase.
Nas sociedades democráticas, o dinheiro é também um mecanismo de integração social e não ter um mínimo de recursos materiais uma forma brutal de privação de liberdade. Negar o acesso ao dinheiro a um conjunto de cidadãos apenas aprofunda os mecanismos de segregação associados à pobreza.
Igualmente chocante é o exercício de novilíngua que dá pelo nome de ‘tributo solidário’. A ideia parece sugestiva, mas é perversa: os beneficiários de prestações sociais devem ser chamados a cumprir trabalho a favor da comunidade. Este princípio, para além de nos reenviar para uma visão punitiva do trabalho, que encontra eco, pelo menos, nas ‘workhouses’ dickensianas, ignora que a reinserção social dos excluídos já depende hoje da activação, não exclusivamente através do regresso ao trabalho. Depois, num contexto de depressão profunda do mercado de trabalho, a transformação dos beneficiários de prestações sociais num novo ‘exército industrial de reserva’ só servirá para colocar pressão adicional sobre os trabalhadores pouco qualificados e de baixos salários – os que estão na iminência de cair na armadilha de pobreza.
Quando num contexto de emergência social, o que o governo tem para dizer aos mais pobres é “tomem lá um kit de sobrevivência e agora vão limpar matas”, dá-nos uma mensagem clara sobre o modelo de sociedade que ambiciona. Um modelo que encontra no ressentimento social a sua energia fundadora.
publicado no Expresso de 2 de Julho
Ao longo do programa é sugerido que as políticas públicas de solidariedade social se transformem num gigantesco banco alimentar. Há nisto um enorme equívoco. Uma coisa são iniciativas muito meritórias da sociedade civil, mas naturalmente parcelares, outra é as políticas públicas assentarem numa lógica discricionária que reproduz princípios desadequados às respostas do Estado. No fundo, trata-se da diferença entre assistencialismo privado e direitos sociais públicos. Além do mais, o modo como o Governo quer associar prestações sociais e trabalho, em particular num momento de desemprego muito elevado, tem um efeito perverso sobre o mercado.
Apesar da ideia de pagar prestações sociais em vales ter desaparecido, a substituição de pagamentos em espécie por géneros mantém-se presente. Numa frase que faz recuar as políticas públicas portuguesas quatro décadas, é estabelecida uma hierarquia dos bens a distribuir aos pobres, uma espécie de ‘kit de sobrevivência’: “são prioritários, em termos de entrega às famílias, os seguintes itens: alimentação, vestuário e medicamento”. Para quem apregoa tanto o liberalismo, dificilmente se encontraria algo tão iliberal como esta menorização dos pobres e a limitação brutal da liberdade de escolha implícita nesta frase.
Nas sociedades democráticas, o dinheiro é também um mecanismo de integração social e não ter um mínimo de recursos materiais uma forma brutal de privação de liberdade. Negar o acesso ao dinheiro a um conjunto de cidadãos apenas aprofunda os mecanismos de segregação associados à pobreza.
Igualmente chocante é o exercício de novilíngua que dá pelo nome de ‘tributo solidário’. A ideia parece sugestiva, mas é perversa: os beneficiários de prestações sociais devem ser chamados a cumprir trabalho a favor da comunidade. Este princípio, para além de nos reenviar para uma visão punitiva do trabalho, que encontra eco, pelo menos, nas ‘workhouses’ dickensianas, ignora que a reinserção social dos excluídos já depende hoje da activação, não exclusivamente através do regresso ao trabalho. Depois, num contexto de depressão profunda do mercado de trabalho, a transformação dos beneficiários de prestações sociais num novo ‘exército industrial de reserva’ só servirá para colocar pressão adicional sobre os trabalhadores pouco qualificados e de baixos salários – os que estão na iminência de cair na armadilha de pobreza.
Quando num contexto de emergência social, o que o governo tem para dizer aos mais pobres é “tomem lá um kit de sobrevivência e agora vão limpar matas”, dá-nos uma mensagem clara sobre o modelo de sociedade que ambiciona. Um modelo que encontra no ressentimento social a sua energia fundadora.
publicado no Expresso de 2 de Julho
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