O mundo de Tony Judt
Numa entrevista televisiva de Julho de 2010, conduzida por Charlie Rose na PBS, Tony Judt dizia estar certo de que dentro de cinco anos estaria morto, para logo acrescentar que se tratava de uma afirmação que, racionalmente, uma pessoa comum não poderia fazer. Uma semana depois, Judt morria, vítima de esclerose lateral amiotrófica, uma terrível doença neurodegenerativa. Na verdade, desde que lhe havia sido diagnosticada a doença de Lou Gehrig, em 2008, que Judt sabia que estava a morrer. Entretanto, como técnica de sobrevivência, havia adoptado um exigente programa de trabalho. Foi isso que lhe permitiu deixar-nos um testamento político, ‘Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos’; um volume, ainda no prelo, sobre a História intelectual do século XX; e ‘Memory Chalet’.
‘Memory Chalet’ é na aparência um livro de memórias de Tony Judt, historiador que se tornou conhecido fora dos círculos académicos com a publicação de ‘Pós-Guerra’. Contudo, os vinte e cinco textos que o compõem, na sua maioria publicados ao longo do último par de anos na ‘New York Review of Books’, são indissociáveis das condições físicas em que foram escritos. Constituem uma revisitação nostálgica do mundo que Tony Judt conheceu.
A doença de Lou Gehrig é um processo degenerativo que progressivamente vai limitando o indivíduo: sem poder deslocar-se ou, finalmente, realizar as tarefas mais básicas, aos sessenta anos Judt tornou-se totalmente dependente. Mas manteve-se lúcido e capaz de comunicar até ao último minuto, ainda que com dificuldade crescente. Estes ensaios foram redigidos mentalmente durante longas noites de solidão, enquanto permanecia desperto e imóvel, preso a um corpo que não controlava, nem sentia, para depois serem ditados. De manhã ainda se lembrava do que queria dizer graças a exercícios de mnemónica baseados nos ‘palácios de memória’ utilizados desde a antiguidade para organizar mentalmente, através de referências espaciais, o pensamento. Em lugar de palácios, para ordenar as suas memórias, Judt recorreu à recordação nostálgica dos chalets suíços onde passava férias na juventude.
Um dos textos mais notáveis, ‘Night’, descreve em detalhe o processo emocionalmente doloroso de preparação para se deitar e tentar dormir: a ‘metamorfose’ de Judt. Ao longo de seis páginas, quase sentimos as limitações físicas, mas também a forma como a capacidade de se manter intelectualmente desperto, recriando as suas vivências passadas, funcionou como estímulo para a vida e aprendizagem individual para a morte.
Para além da dimensão humana do relato da sua experiência degenerativa, ‘Memory Chalet’ revela-se exemplar como demonstração de que o intelectual público Tony Judt é indissociável de uma vida singular num período de transições sociais irrepetível. Sem o seu percurso, que se confunde com uma narrativa intelectual, não era possível nem a densidade polemista, nem a espessura cultural que o caracterizavam. O que tornou Judt um dos ‘espectadores comprometidos’ mais relevantes das últimas décadas foi a combinação de rigor intelectual com uma vida cosmopolita.
Nascido em Londres, em 1948, numa família judia secular, emigrada do Leste Europeu, Judt seguiu um percurso de mobilidade social típico dos ‘baby-boomers’: estudante numa escola pública num bairro de classe média-baixa dos subúrbios de Londres, licenciar-se-ia no selecto King’s College em Cambridge, que então começava a democratizar-se, e mais tarde estudaria na École Normale, em Paris. De ativista sionista na juventude, com várias experiências em kibutz, tornou-se um crítico frontal do Estado de Israel e um social-democrata ‘universalista’, imune aos esquerdismos. Esta mudança foi, em parte, resultado da transformação de historiador marxista, interessado na esquerda francesa do século XX, no académico que ultrapassou uma crise individual de meia-idade através de um regresso às raízes familiares, com uma aproximação aos círculos intelectuais oposicionistas da Europa Central. Entretanto, encontraria em Nova Iorque o domicílio adequado ao seu inconformismo intelectual.
No obituário que lhe dedicou, o seu colega e amigo Timothy Garton Ash escreveu que, por detrás de uma variedade de heranças contrastantes, encontrava-se uma sólida formação no empirismo, cepticismo e liberalismo ingleses. São estas raízes que explicam que Judt fosse olhado, por uns, como um radical esquerdista e, por outros, como um “dinossauro reacionário”. Mantendo-se ancorado à esquerda, Judt não deixou de defender o mérito e os saberes clássicos contra a crescente hegemonia dos estudos identitários, e um ethos de austeridade face ao deslumbramento por uma democratização baseada nos padrões de consumo.
Ao longo de várias páginas, podemos ler um libelo contra a cultura de igualitarismo que tem contaminado o mundo académico e que Judt atribui ao solipsismo comunitário do ‘pós-modernismo’. Do seu professor de alemão do secundário, que não se inibia de classificar o trabalho dos alunos como péssimo –sobre quem Judt deixa o olhar nostálgico de quem sabe estar perante um personagem improvável num mundo escolar que inviabilizou a pressão intelectual sobre os estudantes –, ao retrato que traça da evolução do sistema educativo britânico, o que nos é dada é uma visão pessimista. Focando-se no outrora exemplar sistema britânico, fala-nos da “uniformidade descendente” fruto de uma sequência de reformas cujo objectivo foi atenuar a herança elitista da academia. Para Judt, esta tendência levou a novas formas de estratificação no acesso ao conhecimento: “na minha geração, víamo-nos a nós próprios como sendo ao mesmo tempo radicais e membros de uma elite. Se isto parece incoerente, é a incoerência de uma certa herança liberal, (...) a incoerência da meritocracia: dar a todos as mesmas oportunidades, e depois privilegiar os talentosos”.
O modo como as ciências sociais e humanas foram encorajando as várias minorias a estudarem-se a si mesmas é visto como sintoma de declínio e como uma porta-aberta para o relativismo, reforçando as “mentalidades sectárias e de ghetto que em princípio deviam questionar”. O texto ‘Girls, Girls, Girls’, sobre a obsessão com o ‘assédio sexual’ na academia, na sua fina ironia, é uma eficaz denúncia do novo puritanismo.
Num registo mais político, ao fascínio pelo mercado que contaminou o centro-esquerda na década de noventa, Judt contrapõe a experiência de austeridade vivida no pós-guerra no Reino Unido. Entre as páginas mais interessantes de ‘Memory Chalet’ estão as dedicadas ao exemplo de políticos probos como Clement Attlee e Harry Truman, ou ao lugar que os serviços públicos, em particular os transportes colectivos, ocuparam na construção da comunidade, funcionando como cimento da experiência social-democrática dos ‘trinta gloriosos anos’. A reconstrução do pós-Guerra, uma era de austeridade e de amadurecimento do Estado Providência, é vista também como uma escola de valores. Para um inglês que assistiu à ascensão ao poder do New Labour de Tony Blair, o contraste não podia ser maior. No passado, “a austeridade não era apenas uma condição económica: aspirava a ser uma ética pública” e prossegue: “uma visão empobrecida da comunidade, baseada na comunhão através do consumo, é tudo o que merecemos daqueles que nos governam. Se queremos melhores governantes, temos de aprender a exigir mais deles e menos para nós próprios. Alguma austeridade vinha a calhar”.
Através de apontamentos impressivos mas analíticos, ‘Memory Chalet’ revela-nos alguém que nunca caiu na tentação de substituir uma visão holística do mundo por outra, mas que nem por isso deixou de sublinhar a autonomia relativa das ideias. Sem a diversidade das suas vivências e as contradições de quem se conformou apenas com o inconformismo, não teria existido o intelectual reativo a todas as formas de ortodoxia. “Neste admirável novo século, vamos sentir falta dos tolerantes, dos que vivem nas fronteiras, dos que gostam de explorar os limites. A minha gente”, escreve num dos textos. Tony Judt faz falta.
publicado no Atual do Expresso de 3 de Junho
‘Memory Chalet’ é na aparência um livro de memórias de Tony Judt, historiador que se tornou conhecido fora dos círculos académicos com a publicação de ‘Pós-Guerra’. Contudo, os vinte e cinco textos que o compõem, na sua maioria publicados ao longo do último par de anos na ‘New York Review of Books’, são indissociáveis das condições físicas em que foram escritos. Constituem uma revisitação nostálgica do mundo que Tony Judt conheceu.
A doença de Lou Gehrig é um processo degenerativo que progressivamente vai limitando o indivíduo: sem poder deslocar-se ou, finalmente, realizar as tarefas mais básicas, aos sessenta anos Judt tornou-se totalmente dependente. Mas manteve-se lúcido e capaz de comunicar até ao último minuto, ainda que com dificuldade crescente. Estes ensaios foram redigidos mentalmente durante longas noites de solidão, enquanto permanecia desperto e imóvel, preso a um corpo que não controlava, nem sentia, para depois serem ditados. De manhã ainda se lembrava do que queria dizer graças a exercícios de mnemónica baseados nos ‘palácios de memória’ utilizados desde a antiguidade para organizar mentalmente, através de referências espaciais, o pensamento. Em lugar de palácios, para ordenar as suas memórias, Judt recorreu à recordação nostálgica dos chalets suíços onde passava férias na juventude.
Um dos textos mais notáveis, ‘Night’, descreve em detalhe o processo emocionalmente doloroso de preparação para se deitar e tentar dormir: a ‘metamorfose’ de Judt. Ao longo de seis páginas, quase sentimos as limitações físicas, mas também a forma como a capacidade de se manter intelectualmente desperto, recriando as suas vivências passadas, funcionou como estímulo para a vida e aprendizagem individual para a morte.
Para além da dimensão humana do relato da sua experiência degenerativa, ‘Memory Chalet’ revela-se exemplar como demonstração de que o intelectual público Tony Judt é indissociável de uma vida singular num período de transições sociais irrepetível. Sem o seu percurso, que se confunde com uma narrativa intelectual, não era possível nem a densidade polemista, nem a espessura cultural que o caracterizavam. O que tornou Judt um dos ‘espectadores comprometidos’ mais relevantes das últimas décadas foi a combinação de rigor intelectual com uma vida cosmopolita.
Nascido em Londres, em 1948, numa família judia secular, emigrada do Leste Europeu, Judt seguiu um percurso de mobilidade social típico dos ‘baby-boomers’: estudante numa escola pública num bairro de classe média-baixa dos subúrbios de Londres, licenciar-se-ia no selecto King’s College em Cambridge, que então começava a democratizar-se, e mais tarde estudaria na École Normale, em Paris. De ativista sionista na juventude, com várias experiências em kibutz, tornou-se um crítico frontal do Estado de Israel e um social-democrata ‘universalista’, imune aos esquerdismos. Esta mudança foi, em parte, resultado da transformação de historiador marxista, interessado na esquerda francesa do século XX, no académico que ultrapassou uma crise individual de meia-idade através de um regresso às raízes familiares, com uma aproximação aos círculos intelectuais oposicionistas da Europa Central. Entretanto, encontraria em Nova Iorque o domicílio adequado ao seu inconformismo intelectual.
No obituário que lhe dedicou, o seu colega e amigo Timothy Garton Ash escreveu que, por detrás de uma variedade de heranças contrastantes, encontrava-se uma sólida formação no empirismo, cepticismo e liberalismo ingleses. São estas raízes que explicam que Judt fosse olhado, por uns, como um radical esquerdista e, por outros, como um “dinossauro reacionário”. Mantendo-se ancorado à esquerda, Judt não deixou de defender o mérito e os saberes clássicos contra a crescente hegemonia dos estudos identitários, e um ethos de austeridade face ao deslumbramento por uma democratização baseada nos padrões de consumo.
Ao longo de várias páginas, podemos ler um libelo contra a cultura de igualitarismo que tem contaminado o mundo académico e que Judt atribui ao solipsismo comunitário do ‘pós-modernismo’. Do seu professor de alemão do secundário, que não se inibia de classificar o trabalho dos alunos como péssimo –sobre quem Judt deixa o olhar nostálgico de quem sabe estar perante um personagem improvável num mundo escolar que inviabilizou a pressão intelectual sobre os estudantes –, ao retrato que traça da evolução do sistema educativo britânico, o que nos é dada é uma visão pessimista. Focando-se no outrora exemplar sistema britânico, fala-nos da “uniformidade descendente” fruto de uma sequência de reformas cujo objectivo foi atenuar a herança elitista da academia. Para Judt, esta tendência levou a novas formas de estratificação no acesso ao conhecimento: “na minha geração, víamo-nos a nós próprios como sendo ao mesmo tempo radicais e membros de uma elite. Se isto parece incoerente, é a incoerência de uma certa herança liberal, (...) a incoerência da meritocracia: dar a todos as mesmas oportunidades, e depois privilegiar os talentosos”.
O modo como as ciências sociais e humanas foram encorajando as várias minorias a estudarem-se a si mesmas é visto como sintoma de declínio e como uma porta-aberta para o relativismo, reforçando as “mentalidades sectárias e de ghetto que em princípio deviam questionar”. O texto ‘Girls, Girls, Girls’, sobre a obsessão com o ‘assédio sexual’ na academia, na sua fina ironia, é uma eficaz denúncia do novo puritanismo.
Num registo mais político, ao fascínio pelo mercado que contaminou o centro-esquerda na década de noventa, Judt contrapõe a experiência de austeridade vivida no pós-guerra no Reino Unido. Entre as páginas mais interessantes de ‘Memory Chalet’ estão as dedicadas ao exemplo de políticos probos como Clement Attlee e Harry Truman, ou ao lugar que os serviços públicos, em particular os transportes colectivos, ocuparam na construção da comunidade, funcionando como cimento da experiência social-democrática dos ‘trinta gloriosos anos’. A reconstrução do pós-Guerra, uma era de austeridade e de amadurecimento do Estado Providência, é vista também como uma escola de valores. Para um inglês que assistiu à ascensão ao poder do New Labour de Tony Blair, o contraste não podia ser maior. No passado, “a austeridade não era apenas uma condição económica: aspirava a ser uma ética pública” e prossegue: “uma visão empobrecida da comunidade, baseada na comunhão através do consumo, é tudo o que merecemos daqueles que nos governam. Se queremos melhores governantes, temos de aprender a exigir mais deles e menos para nós próprios. Alguma austeridade vinha a calhar”.
Através de apontamentos impressivos mas analíticos, ‘Memory Chalet’ revela-nos alguém que nunca caiu na tentação de substituir uma visão holística do mundo por outra, mas que nem por isso deixou de sublinhar a autonomia relativa das ideias. Sem a diversidade das suas vivências e as contradições de quem se conformou apenas com o inconformismo, não teria existido o intelectual reativo a todas as formas de ortodoxia. “Neste admirável novo século, vamos sentir falta dos tolerantes, dos que vivem nas fronteiras, dos que gostam de explorar os limites. A minha gente”, escreve num dos textos. Tony Judt faz falta.
publicado no Atual do Expresso de 3 de Junho
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