quinta-feira, agosto 11, 2005

Quem paga a democracia?

As notícias sobre o “mensalão” trouxeram de novo a discussão sobre o financiamento dos partidos políticos. Desta feita, o caso parece circunscrever-se ao Brasil. Contudo, numa altura em que a campanha autárquica se aproxima, perante o número impressionante de outdoors já afixados em muitos concelhos do País, não podemos deixar de pensar nos muitos mensalões que por cá têm necessariamente de existir. O assunto é sério, pois mina a credibilidade do regime, e deve ser discutido sem demagogias.

No Brasil como em Portugal – aliás, como na maior parte das democracias – existe um sério problema de financiamento dos partidos políticos. Aceitando que sem partidos políticos livres não há democracia, estamos perante um sério problema de financiamento do próprio sistema democrático. Perante este facto, o argumento normalmente usado é que os partidos gastam muito dinheiro. Ou seja, só há uma questão com o financiamento porque os gastos partidários são excessivos. Será que é mesmo assim?

A razão primeira para o crescimento dos gastos partidários é o afastamento crescente dos cidadãos face à política ou vice-versa. Por paradoxal que possa parecer, quanto maior é o desinteresse pela política, mais os partidos têm de gastar nas suas actividades. Neste contexto, as campanhas eleitorais tornaram-se particularmente relevantes, ainda que nelas se corporizem muitos dos males da política.
As campanhas servem para confirmar todas as ideias negativas sobre a política, mas são também um momento quase único de mobilização. Quando, durante meses a fio, a política não existe e está afastada das preocupações da maioria dos cidadãos, são fundamentais aquelas curtas semanas em que os candidatos estabelecem laços, ainda que frágeis e temporários, com os eleitores. Numa altura, em que o direito de antena nos meios de comunicação de massas (leia-se nas televisões que é o que conta) é cada vez mais escasso, a alternativa que resta aos partidos é intensificar a sua presença nos poucos momentos em que o podem fazer. Mas isso custa muito dinheiro e tenderá a custar sempre mais.

Basta pensar que o essencial das campanhas assenta em momentos de massas que, hoje, pouco têm de espontâneo. Na maior parte das acções de campanha (ex. os comícios ou os jantares de apoio), a parte fundamental da mobilização recai, com custos elevados, sobre as máquinas partidárias, nomeadamente através do aluguer de autocarros. A estes gastos há que acrescentar a importância crescente dos outdoors (que são actualmente dos meios de campanha mais eficazes, porque permitem uma presença mais duradoura dos candidatos e das suas ideias-chave). Estas são as formas que os partidos têm para se tornarem visíveis nos media e criar um efeito de mobilização popular. São formas caras, mas o problema é que as alternativas para mobilizar eleitoralmente os cidadãos ou são piores ou nem sequer são viáveis.
Quando os cidadãos não se interessam pela política e nos meios de comunicação de massas a política só tem direito de antena sob a forma de escândalo, restam poucas alternativas aos partidos para além de gastarem muito dinheiro durante as campanhas eleitorais. A política tornou-se mais irrelevante, pelo que os partidos mais precisam das campanhas para se tornarem circunstancialmente relevantes. Estamos perante um dos mais sérios problemas das democracias liberais.

A política tem custos crescentes que ninguém está disposto a suportar. Os militantes, porque são cada vez menos, não o podem fazer. Os privados, se o fazem é porque têm um interesse particular na actividade política, divergente do interesse comum. O Estado que é quem deveria suportar o sistema democrático – se bem que hoje o faça de um modo bem superior ao do passado – vê-se confrontado com a crise de legitimidade dos partidos e, aos olhos do contribuinte, dificilmente pode pagar mais.

Acontece que a realidade encontra sempre modo de contornar os problemas. No caso do financiamento partidário, a alternativa é as diversas formas de “mensalões”. Umas mais sofisticadas, outras menos. Umas mais danosas para o interesse público, outras mais fundadas nesse alicerce – pretensamente inofensivo – da sociedade portuguesa que é a “cunha”. A verdade é que os gastos com campanhas (e as campanhas para as autárquicas de Outubro estão aí para prová-lo) são invariavelmente superiores aos limites estabelecidos por lei.

O problema é que isto acontece não porque haja uma tendência partidária para o despesismo (se bem que também exista), mas, sim, porque é necessário gastar nas campanhas para que a democracia vá, com dificuldade, existindo. É por isto que, chegado do outro lado do Atlântico, o mensalão deveria servir para nos questionarmos se não seria preferível, colectivamente, pagarmos mais para que a democracia se financie com independência. A alternativa é permitir a continuação da promiscuidade entre interesses privados e interesse público. Em Portugal como no Brasil, o problema não é este mensalão, mas, sim, o facto da democracia poder transformar-se num gigantesco mensalão.
versão integral do artigo publicado no Diário Económico