A dívida de Cavaco
Numa altura em que o país vê bloqueadas as suas opções para o futuro, há sempre a solução fácil de olhar para um passado mitificado e de pretenso rigor. É neste quadro que, face à ausência de estratégia da esquerda, a candidatura presidencial de Cavaco tem sido lançada, através do reforço do mito de “grande primeiro-ministro”. A verdade é que enquanto Cavaco vai gerindo com economia as suas aparições, continuam por explicar muitos dos aspectos que marcaram negativamente a sua governação.
Nunca é demais recordar os traços principais dos executivos de Cavaco Silva, que ajudam a compreender a sua popularidade nos dias de hoje. No essencial, Cavaco limitou-se a aplicar uma fórmula conhecida. Tendo herdado algum desafogo financeiro, consequência das medidas levadas a cabo durante os governos do Bloco Central e fruto do auxílio dos Fundos Comunitários, os seus executivos aumentaram as regalias dos funcionários públicos e a dimensão do Estado. Fizeram-no sem cuidar de modo sistemático da sua modernização.
O resultado, hoje, é um Estado que é um “monstro”, não tanto pelo que gasta, mas porque a forma como o faz coloca entraves corporativos à sua adaptação a novos contextos. Se a isto somarmos a imagem, tão popular quanto perigosa, de que Cavaco não era um político e se encontrava fora do sistema, temos parte importante da popularidade póstuma dos seus governos. Os portugueses, naturalmente, guardam hoje a memória das benesses de então, esquecendo que muitos dos problemas que hoje enfrentamos são fruto de opções passadas.
Para além do mais, numa altura em se volta a falar insistentemente das dificuldades da segurança social, há uma dimensão da governação Cavaco Silva que não só é particularmente gravosa, como nunca foi devidamente explicada aos portugueses.
Como é sabido, há uma componente importante de despesas sociais que são pagas pelo Orçamento de Estado – entre outras, aquelas que têm a ver com o regime não contributivo. É parte do esforço de coesão que colectivamente fazemos para compensar aqueles que, por diversas razões (por exemplo na reforma), não se encontram protegidos por pensões dentro da lógica de seguro social. O que prevêem as sucessivas leis de Base da Segurança Social é simples: as políticas de solidariedade são pagas pelo Orçamento de Estado e aquilo que são políticas baseadas nas carreiras contributivas dos trabalhadores pagas pelo Orçamento da Segurança Social – que em última análise pertence a quem para ele fez descontos.
Isto é o que a lei prevê. Outra coisa é o que foi feito nos governos de Cavaco Silva. De 1985 a 1995, mesmo em períodos de crescimento económico, nunca foram feitas as transferências devidas do Orçamento de Estado para o Orçamento da Segurança Social. Com isto, não só se ajudou a criar um número artificial para o défice das contas públicas (que mesmo assim foi invariavelmente alto), como se delapidou os recursos da segurança social, que tiveram de financiar o que não lhes competia.
Este dado deve ser recordado. O Livro Branco da Segurança Social apurou que o montante da dívida deixada pelos governos de Cavaco Silva à segurança social ascendeu a 1.206,4 milhões de contos, em valores nominais, sem juros. Hoje, não fora a existência desta dívida, a sustentabilidade do sistema seria maior e a sua componente de capitalização estaria muito mais desenvolvida, garantindo uma almofada financeira importante, particularmente em períodos recessivos.
A partir de 1995, as responsabilidade do Estado passaram a ser cumpridas e as transferências devidas, realizadas. Contudo, é impossível, posteriormente, saldar a dívida preexistente. Até porque, em última análise, tal significaria apenas transferir para sede de Orçamento de Estado o que era um problema da segurança social. O que, aliás, só comprova que Cavaco criou um problema para o qual, hoje, é difícil encontrar solução. Que continue a viver com a imagem do rigor não deixa, por isso, de ser surpreendente.
António Guterres e Durão Barroso, por motivos diversos, abandonaram a meio as funções para as quais tinham sido eleitos pelos portugueses. Cavaco, quando se foi embora, deixou uma dívida, que nunca explicou, para com todos aqueles que fazem descontos dos seus ordenados para a segurança social. Agora, quando tanto fala sobre rigor orçamental e consolidação das contas públicas, talvez fosse boa oportunidade para justificar perante os portugueses as suas manigâncias orçamentais, que, entre outras coisas, ajudaram a delapidar a já de si frágil segurança social portuguesa.
publicado no Diário Económico
Nunca é demais recordar os traços principais dos executivos de Cavaco Silva, que ajudam a compreender a sua popularidade nos dias de hoje. No essencial, Cavaco limitou-se a aplicar uma fórmula conhecida. Tendo herdado algum desafogo financeiro, consequência das medidas levadas a cabo durante os governos do Bloco Central e fruto do auxílio dos Fundos Comunitários, os seus executivos aumentaram as regalias dos funcionários públicos e a dimensão do Estado. Fizeram-no sem cuidar de modo sistemático da sua modernização.
O resultado, hoje, é um Estado que é um “monstro”, não tanto pelo que gasta, mas porque a forma como o faz coloca entraves corporativos à sua adaptação a novos contextos. Se a isto somarmos a imagem, tão popular quanto perigosa, de que Cavaco não era um político e se encontrava fora do sistema, temos parte importante da popularidade póstuma dos seus governos. Os portugueses, naturalmente, guardam hoje a memória das benesses de então, esquecendo que muitos dos problemas que hoje enfrentamos são fruto de opções passadas.
Para além do mais, numa altura em se volta a falar insistentemente das dificuldades da segurança social, há uma dimensão da governação Cavaco Silva que não só é particularmente gravosa, como nunca foi devidamente explicada aos portugueses.
Como é sabido, há uma componente importante de despesas sociais que são pagas pelo Orçamento de Estado – entre outras, aquelas que têm a ver com o regime não contributivo. É parte do esforço de coesão que colectivamente fazemos para compensar aqueles que, por diversas razões (por exemplo na reforma), não se encontram protegidos por pensões dentro da lógica de seguro social. O que prevêem as sucessivas leis de Base da Segurança Social é simples: as políticas de solidariedade são pagas pelo Orçamento de Estado e aquilo que são políticas baseadas nas carreiras contributivas dos trabalhadores pagas pelo Orçamento da Segurança Social – que em última análise pertence a quem para ele fez descontos.
Isto é o que a lei prevê. Outra coisa é o que foi feito nos governos de Cavaco Silva. De 1985 a 1995, mesmo em períodos de crescimento económico, nunca foram feitas as transferências devidas do Orçamento de Estado para o Orçamento da Segurança Social. Com isto, não só se ajudou a criar um número artificial para o défice das contas públicas (que mesmo assim foi invariavelmente alto), como se delapidou os recursos da segurança social, que tiveram de financiar o que não lhes competia.
Este dado deve ser recordado. O Livro Branco da Segurança Social apurou que o montante da dívida deixada pelos governos de Cavaco Silva à segurança social ascendeu a 1.206,4 milhões de contos, em valores nominais, sem juros. Hoje, não fora a existência desta dívida, a sustentabilidade do sistema seria maior e a sua componente de capitalização estaria muito mais desenvolvida, garantindo uma almofada financeira importante, particularmente em períodos recessivos.
A partir de 1995, as responsabilidade do Estado passaram a ser cumpridas e as transferências devidas, realizadas. Contudo, é impossível, posteriormente, saldar a dívida preexistente. Até porque, em última análise, tal significaria apenas transferir para sede de Orçamento de Estado o que era um problema da segurança social. O que, aliás, só comprova que Cavaco criou um problema para o qual, hoje, é difícil encontrar solução. Que continue a viver com a imagem do rigor não deixa, por isso, de ser surpreendente.
António Guterres e Durão Barroso, por motivos diversos, abandonaram a meio as funções para as quais tinham sido eleitos pelos portugueses. Cavaco, quando se foi embora, deixou uma dívida, que nunca explicou, para com todos aqueles que fazem descontos dos seus ordenados para a segurança social. Agora, quando tanto fala sobre rigor orçamental e consolidação das contas públicas, talvez fosse boa oportunidade para justificar perante os portugueses as suas manigâncias orçamentais, que, entre outras coisas, ajudaram a delapidar a já de si frágil segurança social portuguesa.
publicado no Diário Económico
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