O défice como cavalo de Tróia
O défice tem servido para muitas coisas. Algumas delas positivas, como seja capacitar o Governo para levar a cabo medidas que, de outro modo, seriam difíceis de legitimar e implementar. Mas algumas negativas. Entre estas destaca-se a tentativa de justificar o desequilíbrio orçamental com o peso excessivo do denominado “Estado Social”.
Esta ideia tem feito o seu caminho e o défice tem sido um autêntico “cavalo de Tróia” para todos aqueles que fazem do ataque ao Estado Providência bandeira política. Numas versões, o essencial do problema nacional é termos um Estado Social que oferece muitas regalias. Noutras, supostamente mais informadas pela experiência “estrangeira”, o problema nem é apenas nosso. As causas vêm de fora e, no fundo, a culpa é do modelo social europeu, que coloca obstáculos ao bom funcionamento da economia europeia e põe em risco a disciplina orçamental. O que se passa entre nós seria, apenas, uma versão extrema do problema europeu.
Nisto, o crescimento contínuo da despesa pública, que o orçamento rectificativo não procura esconder, tem servido para ajudar à festa de responsabilização da dimensão social por tudo o que de mau se passa na economia portuguesa. Mas será de facto assim?
Antes de mais, convém relembrar um dado simples, estranhamente afastado do debate. Se é verdade que o peso da despesa pública no total do PIB é, entre nós, elevado (ainda que inferior a grande parte da dos países europeus, o que não é atenuante), o mesmo não se passa com a despesa social. Portugal continua a gastar apenas 21,1% do seu PIB em despesa social, perto de 3 pontos menos do que a média europeia (OCDE, UE-15). E, como é sabido, o que se gasta em despesa social condiciona de modo decisivo o padrão de desigualdades. Entre outros factores, esta é parte da explicação para nos mantermos na cauda da Europa em níveis de pobreza – o que nos deveria envergonhar a todos como sociedade.
Portugal tem um problema com a despesa pública e tem um problema com a dimensão social do Estado. Mas estes problemas são de natureza diametralmente oposta. A menos que se confunda toda a despesa pública com despesa social, o problema português não é com a riqueza que o Estado despende em protecção social, mas com a despesa pública, expurgada desta componente.
Já a responsabilidade do modelo social pelo “problema europeu” levanta outras questões, não menos relevantes para as opções políticas em Portugal.
O modelo social europeu tem sido, simultaneamente, responsabilizado pela esclerose da “velha” Europa e como última barricada a defender, perante os ataques selváticos da globalização neo-liberal dirigida a partir do “Novo Mundo”. Dá-se o caso de a dimensão social ser, entre as várias componentes tradicionais das políticas públicas, das menos europeizadas. O essencial das políticas sociais mantém-se na esfera de competência dos Estados-membros e o modelo social europeu pouco passa de um conjunto de princípios políticos partilhados, mas que assume manifestações muito diversas em cada um dos países. Com culturas institucionais fortemente enraizadas, dificilmente a Europa poderia ambicionar a harmonização da componente social dos Estados-membros. Pelo que este é um daqueles assuntos em que ambos os lados do espectro político estão frequentemente envolvidos numa luta contra “moinhos de vento”.
Do mesmo modo que o problema das contas públicas em Portugal não resulta da componente social da despesa pública, também o problema das economias e da robustez orçamental da Europa não decorre do modelo social em si. Há países que têm sabido conciliar economias competitivas com modelos sociais desenvolvidos e outros não. Não há, neste como em muitos outros domínios, um problema europeu. O que há são diferentes problemas nacionais.
Tal como as causas para o mau comportamento de algumas das economias europeias devem ser procuradas em factores domésticos, os problemas dos Estados Providência europeus radicam na forma como estes respondem às transformações das suas economias e estruturas sociais. Imputar a um suposto modelo europeu comum a responsabilidade pelos problemas de alguns dos países europeus é errado
Neste quadro, o desafio para Portugal é, ao mesmo tempo, saber desenvolver o seu modelo de Estado Providência (entre outras coisas, aumentando a despesa social), sem repetir os maus exemplos europeus. Olhar para a Europa continua a ser a melhor opção quando se quer conciliar disciplina orçamental, crescimento do emprego e equidade na distribuição de rendimentos. Contudo, é necessário olhar não para a Europa como um todo, mas para alguns países europeus.
publicado no Diário Económico
Esta ideia tem feito o seu caminho e o défice tem sido um autêntico “cavalo de Tróia” para todos aqueles que fazem do ataque ao Estado Providência bandeira política. Numas versões, o essencial do problema nacional é termos um Estado Social que oferece muitas regalias. Noutras, supostamente mais informadas pela experiência “estrangeira”, o problema nem é apenas nosso. As causas vêm de fora e, no fundo, a culpa é do modelo social europeu, que coloca obstáculos ao bom funcionamento da economia europeia e põe em risco a disciplina orçamental. O que se passa entre nós seria, apenas, uma versão extrema do problema europeu.
Nisto, o crescimento contínuo da despesa pública, que o orçamento rectificativo não procura esconder, tem servido para ajudar à festa de responsabilização da dimensão social por tudo o que de mau se passa na economia portuguesa. Mas será de facto assim?
Antes de mais, convém relembrar um dado simples, estranhamente afastado do debate. Se é verdade que o peso da despesa pública no total do PIB é, entre nós, elevado (ainda que inferior a grande parte da dos países europeus, o que não é atenuante), o mesmo não se passa com a despesa social. Portugal continua a gastar apenas 21,1% do seu PIB em despesa social, perto de 3 pontos menos do que a média europeia (OCDE, UE-15). E, como é sabido, o que se gasta em despesa social condiciona de modo decisivo o padrão de desigualdades. Entre outros factores, esta é parte da explicação para nos mantermos na cauda da Europa em níveis de pobreza – o que nos deveria envergonhar a todos como sociedade.
Portugal tem um problema com a despesa pública e tem um problema com a dimensão social do Estado. Mas estes problemas são de natureza diametralmente oposta. A menos que se confunda toda a despesa pública com despesa social, o problema português não é com a riqueza que o Estado despende em protecção social, mas com a despesa pública, expurgada desta componente.
Já a responsabilidade do modelo social pelo “problema europeu” levanta outras questões, não menos relevantes para as opções políticas em Portugal.
O modelo social europeu tem sido, simultaneamente, responsabilizado pela esclerose da “velha” Europa e como última barricada a defender, perante os ataques selváticos da globalização neo-liberal dirigida a partir do “Novo Mundo”. Dá-se o caso de a dimensão social ser, entre as várias componentes tradicionais das políticas públicas, das menos europeizadas. O essencial das políticas sociais mantém-se na esfera de competência dos Estados-membros e o modelo social europeu pouco passa de um conjunto de princípios políticos partilhados, mas que assume manifestações muito diversas em cada um dos países. Com culturas institucionais fortemente enraizadas, dificilmente a Europa poderia ambicionar a harmonização da componente social dos Estados-membros. Pelo que este é um daqueles assuntos em que ambos os lados do espectro político estão frequentemente envolvidos numa luta contra “moinhos de vento”.
Do mesmo modo que o problema das contas públicas em Portugal não resulta da componente social da despesa pública, também o problema das economias e da robustez orçamental da Europa não decorre do modelo social em si. Há países que têm sabido conciliar economias competitivas com modelos sociais desenvolvidos e outros não. Não há, neste como em muitos outros domínios, um problema europeu. O que há são diferentes problemas nacionais.
Tal como as causas para o mau comportamento de algumas das economias europeias devem ser procuradas em factores domésticos, os problemas dos Estados Providência europeus radicam na forma como estes respondem às transformações das suas economias e estruturas sociais. Imputar a um suposto modelo europeu comum a responsabilidade pelos problemas de alguns dos países europeus é errado
Neste quadro, o desafio para Portugal é, ao mesmo tempo, saber desenvolver o seu modelo de Estado Providência (entre outras coisas, aumentando a despesa social), sem repetir os maus exemplos europeus. Olhar para a Europa continua a ser a melhor opção quando se quer conciliar disciplina orçamental, crescimento do emprego e equidade na distribuição de rendimentos. Contudo, é necessário olhar não para a Europa como um todo, mas para alguns países europeus.
publicado no Diário Económico
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