quarta-feira, maio 18, 2005

Tocado à distância

"Here are the young men, the weight on their shoulders
Here are the young men, well where have they been?
(...)
Weary inside, now our heart’s lost forever
Can’t replace the fear or the thrill of the chase
Each ritual showed up the door for our wanderings
Open then shut, then slammed in our face"
Joy Division, Decades (1980)

Faz hoje precisamente vinte e cinco anos que começou a década de oitenta. Faz hoje, dia 18 de Maio de 2005, vinte e cinco anos que Ian Curtis, vocalista dos Joy Division se suicidou. É uma das características fortes da cultura contemporânea: ser marcada pelos seus ícones suicidas. Os setenta tiveram Jim Morrison, os noventa Kurt Cobain e os oitenta, Ian Curtis. E, se olharmos para trás das luzes e do glamour, esta foi uma década dura. A música dos Joy Division é, simultaneamente, o retrato dessa dureza e o princípio do que viria a seguir.
Pense-se na improbabilidade sociológica. Fim dos anos setenta, quatro rapazes de Manchester, uma cidade desinteressante, perdida no Norte de Inglaterra, que se juntam para pegar no que sobrava do movimento Punk e, com uma nitidez quase excessiva, preparar a cultura contemporânea, e a música em particular, para o futuro. Mas, depois, pense-se na “condição da classe operária em Inglaterra” no prelúdio da revolução Thatcheriana, junte-se-lhe os despojos situacionistas chegados com o grito do baixo materialismo dos Sex Pistols, some-se o lado sombrio da cultura europeia da década de trinta e o acontecimento Joy Division percebe-se melhor. Uma banda que lançou dois álbuns e que, verdade seja dita, apenas com um deles, Closer, o segundo e publicado postumamente, deixou uma marca decisiva para perceber a música dos anos seguintes, os últimos vinte e cinco.
A música do grupo não foi feita para passar o tempo ou para o prazer. Foi feita para a inquietação, para o desassossego. O Miguel Esteves Cardoso, que sobre os Joy Division escreveu quase tudo o que devia ser escrito – veja-se o recentemente re-editado, Escrítica Pop (Assírio e Alvim) – dizia, em 1981, que “Joy Division é apenas um problema que se pôs à música. E se é trágico que não tenha solução, é certamente belo conhecê-lo inteiramente. E dizê-lo.” E parte do problema é o verdadeiro murro no estômago desferido pelas letras de Ian Curtis. As suas palavras angustiadas não tratavam as “coisas” por metáforas ou por outros nomes. Pelo contrário, padeciam de excesso de nitidez e de realidade. No meio estava sempre um negrume, que revelava sinais de vitalidade na relação com o cruel, com o absoluto. Nada do que Ian Curtis escreveu é frio ou sobre o medo. O que nos deixou foi o confronto e um incómodo quase insuportável – que não é típico da cultura popular.
E as palavras traziam com elas música. Uma voz chegada de um outro lugar, mais perto da clareza e da luz, os movimentos frenéticos de Curtis em palco, as guitarras cruas, a raiva vinda de “fora”, herdeira da simplicidade de processos do Punk, e uma camada rítmica densa, mas que soava como que separada do resto, sobreposta. E neste aspecto estava inscrito algo de novo: não mais a música moderna abandonaria o papel do ritmo, do ritmo sem ponto de fuga.
No entanto, as bandas emblemáticas não existem isoladas do tempo e do lugar. E Manchester foi, durante a década de oitenta, o lugar. O lugar em que o ritmo passou a contar e em que, pela mão de Tony Wilson e da Factory Records, este se juntou à música urbana. Mas a epilepsia crescente de Curtis e a sua pulsão suicida, concretizada aos 23 anos num dia quotidiano, não o deixariam participar no que se seguiria: a festa da Madchester do final dos anos oitenta.
Hoje, mais de duas décadas passadas, entre o que persiste está, não só a introspecção transparentemente dura cantada por Ian Curtis, como, também, a estranheza do que os três sobreviventes à sua morte fizeram. Mantiveram a viagem prevista para a América – partiriam poucos dias após 18 de Maio. Aí, conta a lenda, ouviram os ritmos mecânicos que começavam a despontar vindos do underground. O guitarrista fez-se vocalista e passaram a assinar as canções como New Order, naquela que é a mais improvável das transformações de sucesso da história da música e caso único de sobrevivência de uma banda à morte do seu líder. No regresso, mudaram de rosto, levaram o ritmo mais longe e têm-se encarregado de mostrar que a redenção também pode ser feita a dançar. Foi, por isso, nesse momento, no dia da morte de Ian Curtis, que os anos oitenta começaram. Sem a tristeza angustiante dos Joy Division não existiria o falso hedonismo dos New Order, nem o sentimentalismo exacerbado dos The Smiths. Do mesmo modo que teria sido improvável que Stone Roses, Happy Mondays e Primal Scream tivessem, no final da década, posto toda a gente a dançar debaixo de batidas ácidas.
Vinte e cinco anos depois da morte de Ian Curtis, por feliz coincidência, os New Order, que ao vivo regressaram aos temas dos Joy Division, tocam pela primeira vez em Lisboa (dia 28 de Maio), e, por um par de horas, o passado ficará certamente mais perto. Como que tocado à distância. E, no entretanto, algo permanece imutável: os jovens carregam o mesmo peso sobre os ombros.

Publicado em A Capital