O pano e a nódoa
Há onze anos, quando foi eleito líder do Partido Trabalhista, Tony Blair iniciou uma revolução na política britânica. Então, e após década e meia da experiência ultra-liberal da Senhora Thatcher, a esquerda encontrava-se acantonada. Face à revolução imposta pelos conservadores limitava-se a apresentar uma cultura de resistência e a responder com velhos discursos e velhas políticas. O resultado foi uma sucessão de derrotas eleitorais.
Tony Blair, já acompanhado pelo seu amigo/rival Gordon Brown, percebeu que para ganhar não bastava esperar pela degradação dos conservadores, era também preciso desenvolver uma agenda ideológica e política própria, que funcionasse como contraponto ao modelo de Thatcher. O objectivo era construir um New Labour, capaz de olhar para o futuro, quebrando os imobilismos do passado. Esta estratégia foi levada a cabo com uma densidade ideológica normalmente afastada da política partidária.
A primeira batalha foi a promoção da mudança interna no partido, designadamente colocando fim ao poder desproporcional que os sindicatos mantinham e ultrapassando o conservadorismo ideológico, visível, por exemplo, no anacronismo da célebre Clause 4 da declaração de princípios – que, em 1994, defendia a propriedade pelos trabalhadores dos meios de produção e o controlo e administração popular da indústria (sic). A modificação desse artigo, libertou o partido de parte da sua imagem de velha esquerda e deu um sinal do que aí viria.
Inspirando-se em Bill Clinton e nos New Democrats, Tony Blair, sob a etiqueta de terceira via, levou a cabo uma reforma da agenda social-democrata. A ideia era simples: a esquerda só poderia sobreviver se fizesse aquilo que sempre revelou capacidade para fazer ao longo do século – renovar-se. E esta renovação passava por assumir a liderança no combate ideológico, mas, também, ao nível das políticas. Naturalmente, a vontade refundadora de Tony Blair foi recebida com um coro de críticas, muitas delas fruto de leituras apressadas do que estava em causa e resultantes do conservadorismo político de parte da esquerda europeia.
Contudo, Tony Blair revelava essencialmente uma vontade de adequar, com realismo e pragmatismo, os princípios fundadores da esquerda democrática ao contexto social do fim do século XX. Mais democracia, colocando fim ao poder cristalizado dos sindicatos no interior do seu próprio partido, mas, também, devolvendo o poder às regiões, a Gales e à Escócia; Um novo papel para o Estado, apostando na activação das políticas públicas; e colocando o rigor na gestão das finanças públicas como instrumento central para o bom funcionamento da economia e para o crescimento do emprego. Dez anos depois, o saldo é claramente positivo e o idealismo pragmático do New Labour revelou-se uma experiência de sucesso.
Antes de mais, porque com Gordon Brown como Ministro das Finanças, os trabalhistas foram capazes de contrariar o anátema que sobre eles pairava, de que eram medíocres na gestão das finanças públicas. O Reino Unido tem vivido um período ímpar de crescimento económico, com finanças saudáveis. Pelo caminho, foi recuperada a ideia de pleno-emprego, que entretanto havia sido abandonada pela esquerda europeia. Hoje, os níveis de emprego no Reino Unido são modelares em termos europeus. Pode ser dito, com razão, que muitos desses empregos são precários, mal pagos e pouco qualificados. É verdade, mas o mau emprego é, ainda assim, preferível ao desemprego e este tem sido a resposta dada, nos últimos largos anos, por outras grandes economias europeias.
Depois, porque a saúde financeira possibilitou o investimento na administração pública. Contudo, este foi feito com a percepção que não bastava gastar mais, era preciso activar não apenas os beneficiários (o célebre slogan “from welfare to work”), mas, simultaneamente, activar as políticas, colocando pressão sobre os serviços públicos, para que estes desenvolvessem novas respostas sociais. Desse ponto de vista, a opção do governo britânico é muito próxima do que foi feito nos países escandinavos no início da década de noventa.
Finalmente, porque Blair foi um dos grandes responsáveis por dar prioridade na política internacional às questões ambientais, ao combate à pobreza ou à redução da dívida do terceiro-mundo, recuperando uma agenda progressista que havia sido secundarizada durante décadas.
No entanto, provavelmente a maior vitória política de Tony Blair foi ter feito com que a esquerda reassumisse a condução política, definindo os parâmetros e a gramática do debate. É sabido que quem controla os temas em discussão, quem controla a política, naturalmente tem vantagem na competição eleitoral. Hoje, na política britânica os temas centrais da discussão são introduzidos quer pelos trabalhistas, quer pelos liberais, deixando aos conservadores uma agenda anti-sistémica, populista e de reacção. Tony Blair percebeu bem a relevância do combate cultural e de como a política é uma esfera com autonomia para formatar o modo como vemos os dilemas que enfrentam as políticas públicas e a forma como podemos superá-los. Neste aspecto, o caso britânico é excepção, pois, um pouco por toda a Europa, a esquerda tem dado o flanco à direita no combate cultural – Portugal, aliás, é disso exemplo.
Mas, “no melhor pano cai a nódoa”. E o Governo de Blair carrega uma nódoa que, por mais que seja limpa, dificilmente sairá: ter acompanhado os EUA de Bush na guerra do Iraque. É esta decisão que faz com que aquele que deveria ser recordado como o primeiro-ministro da renovação da social-democracia, do crescimento e do emprego, corra o risco de ficar para a história por más razões.
Amanhã, quando os ingleses forem votar, estarão perante um dilema: penalizar Blair pela participação na guerra, esquecendo a boa performance na política doméstica e com isso entregar o poder aos conservadores ou, pelo contrário, apostar que, nos próximos anos, os trabalhistas, eventualmente com Gordon Brown na liderança, serão capazes de levar mais longe o seu reformismo e corrigir a opção quanto ao Iraque. Um terceiro mandato dos trabalhistas, que servisse para atenuar o erro iraquiano, era importante, entre outras razões, para que a esquerda pudesse com tranquilidade incorporar o património da experiência de sucesso do New Labour.
publicado em A Capital
Tony Blair, já acompanhado pelo seu amigo/rival Gordon Brown, percebeu que para ganhar não bastava esperar pela degradação dos conservadores, era também preciso desenvolver uma agenda ideológica e política própria, que funcionasse como contraponto ao modelo de Thatcher. O objectivo era construir um New Labour, capaz de olhar para o futuro, quebrando os imobilismos do passado. Esta estratégia foi levada a cabo com uma densidade ideológica normalmente afastada da política partidária.
A primeira batalha foi a promoção da mudança interna no partido, designadamente colocando fim ao poder desproporcional que os sindicatos mantinham e ultrapassando o conservadorismo ideológico, visível, por exemplo, no anacronismo da célebre Clause 4 da declaração de princípios – que, em 1994, defendia a propriedade pelos trabalhadores dos meios de produção e o controlo e administração popular da indústria (sic). A modificação desse artigo, libertou o partido de parte da sua imagem de velha esquerda e deu um sinal do que aí viria.
Inspirando-se em Bill Clinton e nos New Democrats, Tony Blair, sob a etiqueta de terceira via, levou a cabo uma reforma da agenda social-democrata. A ideia era simples: a esquerda só poderia sobreviver se fizesse aquilo que sempre revelou capacidade para fazer ao longo do século – renovar-se. E esta renovação passava por assumir a liderança no combate ideológico, mas, também, ao nível das políticas. Naturalmente, a vontade refundadora de Tony Blair foi recebida com um coro de críticas, muitas delas fruto de leituras apressadas do que estava em causa e resultantes do conservadorismo político de parte da esquerda europeia.
Contudo, Tony Blair revelava essencialmente uma vontade de adequar, com realismo e pragmatismo, os princípios fundadores da esquerda democrática ao contexto social do fim do século XX. Mais democracia, colocando fim ao poder cristalizado dos sindicatos no interior do seu próprio partido, mas, também, devolvendo o poder às regiões, a Gales e à Escócia; Um novo papel para o Estado, apostando na activação das políticas públicas; e colocando o rigor na gestão das finanças públicas como instrumento central para o bom funcionamento da economia e para o crescimento do emprego. Dez anos depois, o saldo é claramente positivo e o idealismo pragmático do New Labour revelou-se uma experiência de sucesso.
Antes de mais, porque com Gordon Brown como Ministro das Finanças, os trabalhistas foram capazes de contrariar o anátema que sobre eles pairava, de que eram medíocres na gestão das finanças públicas. O Reino Unido tem vivido um período ímpar de crescimento económico, com finanças saudáveis. Pelo caminho, foi recuperada a ideia de pleno-emprego, que entretanto havia sido abandonada pela esquerda europeia. Hoje, os níveis de emprego no Reino Unido são modelares em termos europeus. Pode ser dito, com razão, que muitos desses empregos são precários, mal pagos e pouco qualificados. É verdade, mas o mau emprego é, ainda assim, preferível ao desemprego e este tem sido a resposta dada, nos últimos largos anos, por outras grandes economias europeias.
Depois, porque a saúde financeira possibilitou o investimento na administração pública. Contudo, este foi feito com a percepção que não bastava gastar mais, era preciso activar não apenas os beneficiários (o célebre slogan “from welfare to work”), mas, simultaneamente, activar as políticas, colocando pressão sobre os serviços públicos, para que estes desenvolvessem novas respostas sociais. Desse ponto de vista, a opção do governo britânico é muito próxima do que foi feito nos países escandinavos no início da década de noventa.
Finalmente, porque Blair foi um dos grandes responsáveis por dar prioridade na política internacional às questões ambientais, ao combate à pobreza ou à redução da dívida do terceiro-mundo, recuperando uma agenda progressista que havia sido secundarizada durante décadas.
No entanto, provavelmente a maior vitória política de Tony Blair foi ter feito com que a esquerda reassumisse a condução política, definindo os parâmetros e a gramática do debate. É sabido que quem controla os temas em discussão, quem controla a política, naturalmente tem vantagem na competição eleitoral. Hoje, na política britânica os temas centrais da discussão são introduzidos quer pelos trabalhistas, quer pelos liberais, deixando aos conservadores uma agenda anti-sistémica, populista e de reacção. Tony Blair percebeu bem a relevância do combate cultural e de como a política é uma esfera com autonomia para formatar o modo como vemos os dilemas que enfrentam as políticas públicas e a forma como podemos superá-los. Neste aspecto, o caso britânico é excepção, pois, um pouco por toda a Europa, a esquerda tem dado o flanco à direita no combate cultural – Portugal, aliás, é disso exemplo.
Mas, “no melhor pano cai a nódoa”. E o Governo de Blair carrega uma nódoa que, por mais que seja limpa, dificilmente sairá: ter acompanhado os EUA de Bush na guerra do Iraque. É esta decisão que faz com que aquele que deveria ser recordado como o primeiro-ministro da renovação da social-democracia, do crescimento e do emprego, corra o risco de ficar para a história por más razões.
Amanhã, quando os ingleses forem votar, estarão perante um dilema: penalizar Blair pela participação na guerra, esquecendo a boa performance na política doméstica e com isso entregar o poder aos conservadores ou, pelo contrário, apostar que, nos próximos anos, os trabalhistas, eventualmente com Gordon Brown na liderança, serão capazes de levar mais longe o seu reformismo e corrigir a opção quanto ao Iraque. Um terceiro mandato dos trabalhistas, que servisse para atenuar o erro iraquiano, era importante, entre outras razões, para que a esquerda pudesse com tranquilidade incorporar o património da experiência de sucesso do New Labour.
publicado em A Capital
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