O ruído dos boys e dos jobs
Desde que António Guterres o introduziu que o tema “jobs for the boys” não tem largado o espaço público. Muda o governo, a discussão regressa e as posições relativas invertem-se. A oposição, que antes era governo, passa a criticar o governo, que naturalmente antes era oposição, pelas mesmas razões. Não surpreende. O assunto é popular, quer entre políticos quer entre jornalistas. Por isso, ambos o vão alimentando. No entretanto, vai-se contribuindo para a degradação da imagem da administração pública.
É evidente que o problema existe. O poder discricionário do governo para nomear é, em Portugal, excessivo. Ao longo dos anos temos tido provas, muitas delas caricatas, disso mesmo. De primos a sobrinhos, passando por filhos e muitos incompetentes, vimos de tudo. Até porque a prerrogativa de distribuir jobs é particularmente importante para contrariar o declínio da militância partidária. A possibilidade de nomear e de ser nomeado é, hoje, um cimento fundamental dos partidos de poder.
Ainda assim, o principal problema do debate não é nem os jobs nem os boys. O que este debate tem de mais negativo é o facto de impedir que se avance nos factores decisivos para a reforma da administração pública. Enquanto há ruído em torno das nomeações, tudo o resto se torna opaco. Por isso, esta é uma das áreas em que é absolutamente fundamental que haja um acordo entre os diversos partidos e os parceiros sociais. Pôr termo ao debate sobre as nomeações é um primeiro passo para se discutir o que, de facto, importa.
Mas, naturalmente, que não se trata de silenciar o tema. É preciso encontrar uma solução razoável, que tenha presente que nenhuma administração funciona sem um número significativo de nomeações, mas que limite a actual situação de excessiva discricionariedade política, designadamente nos lugares de chefia intermédia.
Convém ter presente que, em Portugal, mesmo sem as limitações legais existentes noutros países, na prática, por exemplo, ao nível de directores-gerais, o recrutamento é, essencialmente, feito no interior da própria administrações pública e os jobs são ocupados por gente com níveis de qualificações elevados. Aliás, Luís Nobre Guedes, numa entrevista recente, revelando uma lucidez incomum entre os responsáveis do PSD e CDS, na análise dos motivos da derrocada da coligação de direita, veio reconhecer que a anterior maioria “nunca entendeu uma coisa muito clara: Portugal não é o país que os consultores fazem ou imaginam. (...) Veja-se o caso da administração pública. Dizia-se que era terrível, mas eu cheguei ao Governo e encontrei pessoas de tanta qualidade como no sector privado. Portanto, quando se diz com algum à vontade que a administração pública é um dos maiores problemas do país ignora a qualidade humana que aí existe.”
Claro que a administração não pode funcionar bem se sobre ela pairar um discurso que permanentemente sublinha a sua incompetência e ineficácia. Pelo que, do mesmo modo que não pode haver sucesso nas políticas públicas sem um Estado moderno, não pode haver uma administração motivada sem um discurso político que a mobilize. Ao utilizar a administração pública como arma de arremesso político e como espaço de utilização de todos os lugares comuns, está-se a prestar um péssimo serviço ao desenvolvimento do país e a obstaculizar a reforma dos serviços públicos.
Para reformar a administração pública não são precisos grandes consultores, nem é necessário inventar a pólvora. Os verdadeiros problemas estão há muito identificados. Ao contrário do que é muitas das vezes afirmado, não há Estado a mais. Há Estado a mais nuns sectores e a menos noutros. Não há funcionários públicos a mais. Há funcionários a mais numas áreas e a menos noutras. Temos um Estado excessivamente centralista e uma administração com problemas de qualificação, produtividade e avaliação. Mas nenhum destes problemas se resolve com a campanha negativa sobre a administração pública.
O debate sobre as nomeações de dirigentes é um obstáculo que tem de ser ultrapassado. Um pacto sobre esta questão é decisivo para que se possa começar a enfrentar os problemas que, de facto, existem. Só pondo fim ao ruído em torno das nomeações se pode estabilizar o quadro organizativo; modernizar os instrumentos de gestão; implementar uma cultura de avaliação; desburocratizar; flexibilizar procedimentos e alterar o vínculo laboral dominante. Tudo questões bem mais importantes que os jobs e os respectivos boys.
publicado no Diário Económico
É evidente que o problema existe. O poder discricionário do governo para nomear é, em Portugal, excessivo. Ao longo dos anos temos tido provas, muitas delas caricatas, disso mesmo. De primos a sobrinhos, passando por filhos e muitos incompetentes, vimos de tudo. Até porque a prerrogativa de distribuir jobs é particularmente importante para contrariar o declínio da militância partidária. A possibilidade de nomear e de ser nomeado é, hoje, um cimento fundamental dos partidos de poder.
Ainda assim, o principal problema do debate não é nem os jobs nem os boys. O que este debate tem de mais negativo é o facto de impedir que se avance nos factores decisivos para a reforma da administração pública. Enquanto há ruído em torno das nomeações, tudo o resto se torna opaco. Por isso, esta é uma das áreas em que é absolutamente fundamental que haja um acordo entre os diversos partidos e os parceiros sociais. Pôr termo ao debate sobre as nomeações é um primeiro passo para se discutir o que, de facto, importa.
Mas, naturalmente, que não se trata de silenciar o tema. É preciso encontrar uma solução razoável, que tenha presente que nenhuma administração funciona sem um número significativo de nomeações, mas que limite a actual situação de excessiva discricionariedade política, designadamente nos lugares de chefia intermédia.
Convém ter presente que, em Portugal, mesmo sem as limitações legais existentes noutros países, na prática, por exemplo, ao nível de directores-gerais, o recrutamento é, essencialmente, feito no interior da própria administrações pública e os jobs são ocupados por gente com níveis de qualificações elevados. Aliás, Luís Nobre Guedes, numa entrevista recente, revelando uma lucidez incomum entre os responsáveis do PSD e CDS, na análise dos motivos da derrocada da coligação de direita, veio reconhecer que a anterior maioria “nunca entendeu uma coisa muito clara: Portugal não é o país que os consultores fazem ou imaginam. (...) Veja-se o caso da administração pública. Dizia-se que era terrível, mas eu cheguei ao Governo e encontrei pessoas de tanta qualidade como no sector privado. Portanto, quando se diz com algum à vontade que a administração pública é um dos maiores problemas do país ignora a qualidade humana que aí existe.”
Claro que a administração não pode funcionar bem se sobre ela pairar um discurso que permanentemente sublinha a sua incompetência e ineficácia. Pelo que, do mesmo modo que não pode haver sucesso nas políticas públicas sem um Estado moderno, não pode haver uma administração motivada sem um discurso político que a mobilize. Ao utilizar a administração pública como arma de arremesso político e como espaço de utilização de todos os lugares comuns, está-se a prestar um péssimo serviço ao desenvolvimento do país e a obstaculizar a reforma dos serviços públicos.
Para reformar a administração pública não são precisos grandes consultores, nem é necessário inventar a pólvora. Os verdadeiros problemas estão há muito identificados. Ao contrário do que é muitas das vezes afirmado, não há Estado a mais. Há Estado a mais nuns sectores e a menos noutros. Não há funcionários públicos a mais. Há funcionários a mais numas áreas e a menos noutras. Temos um Estado excessivamente centralista e uma administração com problemas de qualificação, produtividade e avaliação. Mas nenhum destes problemas se resolve com a campanha negativa sobre a administração pública.
O debate sobre as nomeações de dirigentes é um obstáculo que tem de ser ultrapassado. Um pacto sobre esta questão é decisivo para que se possa começar a enfrentar os problemas que, de facto, existem. Só pondo fim ao ruído em torno das nomeações se pode estabilizar o quadro organizativo; modernizar os instrumentos de gestão; implementar uma cultura de avaliação; desburocratizar; flexibilizar procedimentos e alterar o vínculo laboral dominante. Tudo questões bem mais importantes que os jobs e os respectivos boys.
publicado no Diário Económico
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