Salvos pela Europa
As medidas apresentadas pelo Governo na sequência do relatório Constâncio têm sido, com justiça, classificadas de necessárias e legítimas. Ainda assim, ao mesmo tempo, é afirmado que, no médio prazo, pouco impacto têm na diminuição do desequilíbrio das contas públicas. Este facto prova que o défice, tantas vezes invocado como razão da austeridade, funciona também como caução política para o Governo fazer o que, em condições normais, dificilmente faria.
No fundo, nada de novo. Nos últimos trinta anos, ajustamentos nas nossas políticas públicas com impacto social e político negativo foram invariavelmente feitos quando existia um constrangimento externo forte. Em meados da década de oitenta com o bloco central, o pretexto foi a adesão à CEE; dez anos depois, a entrada na moeda única; agora, a razão invocada é os 3% de défice permitidos pelo PEC. Comum a todas estas situações foi o facto de a Europa ter sido usada como desculpa. Desculpa para levar à prática medidas que visavam cumprir requisitos de facto existentes, mas, também, para alterar políticas que não tinham a ver directamente com imposições europeias.
Antes de mais, este facto diz-nos muito sobre a política portuguesa. Com um sistema que tem evoluído para um presidencialismo de primeiro-ministro, com um parlamento em crise de legitimidade e com um corporativismo artificial, a capacidade do Estado em desenvolver políticas enfrenta poucos pontos de veto formais. Apesar disto, paradoxalmente, o Estado português tem pouca capacidade para implementar políticas difíceis, que promovam ajustamentos necessários. É que os pontos de veto formais são poucos, mas os bloqueios subterrâneos são, pelo contrário, muitos e poderosos.
Por isso, Portugal tem recorrido à ajuda externa, simultaneamente, como mecanismo para aumentar a sua capacidade institucional e para “passar as culpas”. Algo que, aliás, acontece um pouco por toda a Europa, mas com particular incidência nos países do Sul. Aí, a UE tem funcionado como pretexto para os Estados levarem a cabo políticas que, por si só, não teriam capacidade de concretizar, mesmo quando os actores políticos as identificam como necessárias. E isto ocorre, não tanto pela coacção de facto, mas, sim, através da persuasão da opinião pública. O que leva a que se possa sustentar que, ao contrário do que é muitas vezes afirmado, a integração não tem ameaçado a soberania do Estado-nação, pelo contrário, tem contribuído, ainda que de forma indirecta, para a sua salvação (veja-se a este propósito, o livro de Alan Milward, The European Rescue of the Nation State). Mas, este comportamento, característico do Estado português, levanta, entre outros, dois tipos de problemas.
Primeiro, o que se prende com a eventual tendência das políticas públicas, assim que a pressão externa é aliviada ou desaparece, para abandonarem o padrão de ajustamento e regressarem ao modelo prévio. Exemplo disto seria, por exemplo, a reposição do sistema de progressão automática de carreiras na função pública quando fossem ultrapassadas as dificuldades que enfrenta a despesa.
Segundo, o que tem a ver com a tentação de importar modelos que noutros países se revelaram virtuosos, mas que não são adequados à realidade social portuguesa. Na verdade, muitas soluções “europeias”, que entusiasmam na teoria e que aparentam ser panaceias para todos os males, tendem, na prática, a revelar-se exactamente o contrário. A Europa pode servir de exemplo e constrangimento positivo. Mas para que assim seja, é necessário realismo e uma dose justa de conhecimento dos equilíbrios frágeis em que assenta o Estado, mas, essencialmente, a sociedade e o tecido empresarial portugueses. Importar o que vem de fora de modo acrítico, tem sido um erro demasiadamente popular na história política portuguesa recente.
Quando, entre nós, se celebram vinte anos da assinatura da adesão e numa altura em que a Europa, a propósito do Tratado Constitucional, tem embarcado em discussões, por vezes, fetichistas, era bom recordar que foi também a integração que ajudou a criar uma entidade capaz de funcionar como desculpa para os Estados-nação ajustarem as suas políticas públicas. Sob a pressão do constrangimento europeu, e em nome do défice, Portugal pode estar, novamente, a ser salvo pela Europa.
publicado no Diário Económico
No fundo, nada de novo. Nos últimos trinta anos, ajustamentos nas nossas políticas públicas com impacto social e político negativo foram invariavelmente feitos quando existia um constrangimento externo forte. Em meados da década de oitenta com o bloco central, o pretexto foi a adesão à CEE; dez anos depois, a entrada na moeda única; agora, a razão invocada é os 3% de défice permitidos pelo PEC. Comum a todas estas situações foi o facto de a Europa ter sido usada como desculpa. Desculpa para levar à prática medidas que visavam cumprir requisitos de facto existentes, mas, também, para alterar políticas que não tinham a ver directamente com imposições europeias.
Antes de mais, este facto diz-nos muito sobre a política portuguesa. Com um sistema que tem evoluído para um presidencialismo de primeiro-ministro, com um parlamento em crise de legitimidade e com um corporativismo artificial, a capacidade do Estado em desenvolver políticas enfrenta poucos pontos de veto formais. Apesar disto, paradoxalmente, o Estado português tem pouca capacidade para implementar políticas difíceis, que promovam ajustamentos necessários. É que os pontos de veto formais são poucos, mas os bloqueios subterrâneos são, pelo contrário, muitos e poderosos.
Por isso, Portugal tem recorrido à ajuda externa, simultaneamente, como mecanismo para aumentar a sua capacidade institucional e para “passar as culpas”. Algo que, aliás, acontece um pouco por toda a Europa, mas com particular incidência nos países do Sul. Aí, a UE tem funcionado como pretexto para os Estados levarem a cabo políticas que, por si só, não teriam capacidade de concretizar, mesmo quando os actores políticos as identificam como necessárias. E isto ocorre, não tanto pela coacção de facto, mas, sim, através da persuasão da opinião pública. O que leva a que se possa sustentar que, ao contrário do que é muitas vezes afirmado, a integração não tem ameaçado a soberania do Estado-nação, pelo contrário, tem contribuído, ainda que de forma indirecta, para a sua salvação (veja-se a este propósito, o livro de Alan Milward, The European Rescue of the Nation State). Mas, este comportamento, característico do Estado português, levanta, entre outros, dois tipos de problemas.
Primeiro, o que se prende com a eventual tendência das políticas públicas, assim que a pressão externa é aliviada ou desaparece, para abandonarem o padrão de ajustamento e regressarem ao modelo prévio. Exemplo disto seria, por exemplo, a reposição do sistema de progressão automática de carreiras na função pública quando fossem ultrapassadas as dificuldades que enfrenta a despesa.
Segundo, o que tem a ver com a tentação de importar modelos que noutros países se revelaram virtuosos, mas que não são adequados à realidade social portuguesa. Na verdade, muitas soluções “europeias”, que entusiasmam na teoria e que aparentam ser panaceias para todos os males, tendem, na prática, a revelar-se exactamente o contrário. A Europa pode servir de exemplo e constrangimento positivo. Mas para que assim seja, é necessário realismo e uma dose justa de conhecimento dos equilíbrios frágeis em que assenta o Estado, mas, essencialmente, a sociedade e o tecido empresarial portugueses. Importar o que vem de fora de modo acrítico, tem sido um erro demasiadamente popular na história política portuguesa recente.
Quando, entre nós, se celebram vinte anos da assinatura da adesão e numa altura em que a Europa, a propósito do Tratado Constitucional, tem embarcado em discussões, por vezes, fetichistas, era bom recordar que foi também a integração que ajudou a criar uma entidade capaz de funcionar como desculpa para os Estados-nação ajustarem as suas políticas públicas. Sob a pressão do constrangimento europeu, e em nome do défice, Portugal pode estar, novamente, a ser salvo pela Europa.
publicado no Diário Económico
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