Tanto trabalho para isto!
A margem de manobra para a estratégia do Governo era curta. É verdade que as condições institucionais eram ímpares na história política recente. Com uma sólida maioria absoluta de um só partido, com o Presidente e o governador do Banco de Portugal a apoiarem a estratégia seguida, era possível convencer os portugueses da necessidade de um pacote de políticas de austeridade. Bastava que a isso se somasse a sensibilidade política que faltou a Durão Barroso quando optou pelo discurso da tanga. Por isso, a táctica seguida foi clara: um conjunto de declarações sobre a dimensão chocante do défice servia para criar o contexto; depois, face ao valor apurado, José Sócrates tinha condições para impor medidas difíceis, diminuindo o impacto negativo das mesmas na popularidade do Governo. Mas, ainda assim, a estratégia tinha custos elevados que havia que minorar. Para tal, era preciso encontrar uma dimensão que colocasse a opinião pública em sintonia com o Governo. A opção foi compensar a austeridade com o fim de privilégios da classe política, generalizadamente vistos como injustificados.
Acontece que esta opção, sendo muito popular, acarretava riscos enormes, visto trilhar caminhos perigosos. E, na verdade, poucos dias bastaram para que o feitiço se virasse contra o feiticeiro. Estava tudo a correr tão bem, pensava o Governo. A prestação de José Sócrates fora muito convincente, o país tinha interiorizado a necessidade de passar por momentos difíceis e a popularidade do governo não se havia ressentido significativamente com as opções tomadas. Mas, no melhor pano cai a nódoa. E quando as nódoas são claramente evitáveis, têm tendência a deixar uma marca forte, que raramente sai. A acumulação da subvenção vitalícia do Banco de Portugal com o ordenado de Ministro por Campos e Cunha é uma nódoa que o bom senso deveria ter evitado.
Se acreditarmos nos sinais que chegam à imprensa, Campos e Cunha tem sido um elemento perturbador da coesão interna do Governo. Primeiro, porque ainda antes de tomar posse fez declarações que contradiziam o defendido pelo Primeiro-Ministro, ao vir falar do aumento de impostos. Depois, porque, através de fugas seleccionadas, foi colocando constrangimentos sobre os seus colegas para que se vissem obrigados a adoptar as soluções por ele defendidas – leia-se, o inevitável aumento dos impostos. Caso contrário, ficámos a saber na altura, pelo Expresso, apresentaria a sua demissão. Até aqui estávamos no domínio da pressão legítima sobre os restantes membros do Governo. Se a opção tomada foi a melhor, é outra questão.
Mas com a acumulação de remunerações, o caso muda de figura. O que está em causa não é, naturalmente, um assunto de legalidade. É evidente que Campos e Cunha tem toda a legitimidade formal para acumular o ordenado de Ministro com a subvenção de oito mil euros por ter sido durante seis anos vice-governador do Banco de Portugal. O que está em causa é uma questão política, com um impacto simbólico que contagia toda a acção do executivo. Isto é sobretudo verdade porquanto foi o governo que decidiu pôr fim a regalias injustificadas da classe política para dar o exemplo.
E o problema poderia ter sido evitado. Bastava um pouco de sensibilidade para os tempos que vivemos. Aliás, a solução parece já ter sido encontrada, com a decisão do Governo de aprovar um diploma que obriga quem exerce cargos políticos e é, simultaneamente, beneficiário de uma pensão a optar pela totalidade de uma das remunerações e um terço da outra. A solução é boa, mas chegou tarde e já não serve para limpar a nódoa. O que é estranho é que um Ministro que foi a face visível do combate aos privilégios injustificados, não se tenha apercebido, no mesmo momento em que apresentava medidas austeras para a função pública, que também ele beneficiava de um privilégio absolutamente injustificado. O Ministro Campos e Cunha teve a oportunidade de dar o exemplo e ajudar à aceitação pública das medidas do Governo. Na altura adequada, não o quis fazer. Agora, é tarde.
Contudo, a publicitação do sistema de reformas do Banco de Portugal levanta outras questões, talvez bem mais gravosas. Parece que Campos e Cunha não foi responsável pela criação deste esquema de pensões. Mas então quem foi? Que país é este onde a grande maioria dos trabalhadores que faz descontos para a segurança social recebe pensões modestas, mas que são as praticáveis, e depois é possível a alguém, por exercer um cargo durante seis anos, e mesmo quando está ainda em idade activa, ficar a receber uma remuneração vitalícia de mais de 1500 contos mensais? Como é que é financiado este esquema de pensões? Beneficia quem? Qual é a sua sustentabilidade? E serve para quê?
Esta é, afinal, uma das características perversas do Estado português: a capacidade de sobreproteger certos sectores da população, ao mesmo tempo que deixa em situação precária grande parte dos portugueses. Poucas coisas contribuem tanto para o descrédito do Estado como a existência destas regalias injustificados – sejam elas no Banco de Portugal, na Caixa Geral de Depósitos, em alguns corpos especiais ou entre a classe política. A sensação de que há dois países mina a confiança dos portugueses nas instituições.
Por tudo isto, Campos e Cunha perdeu a legitimidade e a autoridade para exigir sacrifícios aos portugueses. O Governo teve tanto trabalho para levar avante a sua estratégia de pôr fim a um conjunto de privilégios que não merecia que isto lhe acontecesse.
publicado em A Capital
Acontece que esta opção, sendo muito popular, acarretava riscos enormes, visto trilhar caminhos perigosos. E, na verdade, poucos dias bastaram para que o feitiço se virasse contra o feiticeiro. Estava tudo a correr tão bem, pensava o Governo. A prestação de José Sócrates fora muito convincente, o país tinha interiorizado a necessidade de passar por momentos difíceis e a popularidade do governo não se havia ressentido significativamente com as opções tomadas. Mas, no melhor pano cai a nódoa. E quando as nódoas são claramente evitáveis, têm tendência a deixar uma marca forte, que raramente sai. A acumulação da subvenção vitalícia do Banco de Portugal com o ordenado de Ministro por Campos e Cunha é uma nódoa que o bom senso deveria ter evitado.
Se acreditarmos nos sinais que chegam à imprensa, Campos e Cunha tem sido um elemento perturbador da coesão interna do Governo. Primeiro, porque ainda antes de tomar posse fez declarações que contradiziam o defendido pelo Primeiro-Ministro, ao vir falar do aumento de impostos. Depois, porque, através de fugas seleccionadas, foi colocando constrangimentos sobre os seus colegas para que se vissem obrigados a adoptar as soluções por ele defendidas – leia-se, o inevitável aumento dos impostos. Caso contrário, ficámos a saber na altura, pelo Expresso, apresentaria a sua demissão. Até aqui estávamos no domínio da pressão legítima sobre os restantes membros do Governo. Se a opção tomada foi a melhor, é outra questão.
Mas com a acumulação de remunerações, o caso muda de figura. O que está em causa não é, naturalmente, um assunto de legalidade. É evidente que Campos e Cunha tem toda a legitimidade formal para acumular o ordenado de Ministro com a subvenção de oito mil euros por ter sido durante seis anos vice-governador do Banco de Portugal. O que está em causa é uma questão política, com um impacto simbólico que contagia toda a acção do executivo. Isto é sobretudo verdade porquanto foi o governo que decidiu pôr fim a regalias injustificadas da classe política para dar o exemplo.
E o problema poderia ter sido evitado. Bastava um pouco de sensibilidade para os tempos que vivemos. Aliás, a solução parece já ter sido encontrada, com a decisão do Governo de aprovar um diploma que obriga quem exerce cargos políticos e é, simultaneamente, beneficiário de uma pensão a optar pela totalidade de uma das remunerações e um terço da outra. A solução é boa, mas chegou tarde e já não serve para limpar a nódoa. O que é estranho é que um Ministro que foi a face visível do combate aos privilégios injustificados, não se tenha apercebido, no mesmo momento em que apresentava medidas austeras para a função pública, que também ele beneficiava de um privilégio absolutamente injustificado. O Ministro Campos e Cunha teve a oportunidade de dar o exemplo e ajudar à aceitação pública das medidas do Governo. Na altura adequada, não o quis fazer. Agora, é tarde.
Contudo, a publicitação do sistema de reformas do Banco de Portugal levanta outras questões, talvez bem mais gravosas. Parece que Campos e Cunha não foi responsável pela criação deste esquema de pensões. Mas então quem foi? Que país é este onde a grande maioria dos trabalhadores que faz descontos para a segurança social recebe pensões modestas, mas que são as praticáveis, e depois é possível a alguém, por exercer um cargo durante seis anos, e mesmo quando está ainda em idade activa, ficar a receber uma remuneração vitalícia de mais de 1500 contos mensais? Como é que é financiado este esquema de pensões? Beneficia quem? Qual é a sua sustentabilidade? E serve para quê?
Esta é, afinal, uma das características perversas do Estado português: a capacidade de sobreproteger certos sectores da população, ao mesmo tempo que deixa em situação precária grande parte dos portugueses. Poucas coisas contribuem tanto para o descrédito do Estado como a existência destas regalias injustificados – sejam elas no Banco de Portugal, na Caixa Geral de Depósitos, em alguns corpos especiais ou entre a classe política. A sensação de que há dois países mina a confiança dos portugueses nas instituições.
Por tudo isto, Campos e Cunha perdeu a legitimidade e a autoridade para exigir sacrifícios aos portugueses. O Governo teve tanto trabalho para levar avante a sua estratégia de pôr fim a um conjunto de privilégios que não merecia que isto lhe acontecesse.
publicado em A Capital
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