A Armadilha da Tanga
Hegel terá escrito que os grandes acontecimentos históricos se repetem. Marx, apesar de várias gerações de hegelianos nunca terem encontrado a referência original, acrescentou, numa formulação famosa, que tal acontece primeiro como tragédia e depois como farsa. Vem isto a propósito do relatório de Vitor Constâncio e dos 6,83% de défice das contas públicas. Precisamente três anos depois, tudo parece repetir-se, com duas agravantes, por um lado, o número apurado é superior e, por outro, há o risco de, na repetição, a tragédia assumir, agora, contornos fársicos.
Sabemos hoje o que se passou em 2002. Uma campanha eleitoral em que o então candidato Durão Barroso prometeu tudo a todos, isto enquanto falava de um défice próximo do do Burundi. Ao mesmo tempo, o seu futuro parceiro de coligação andava de feira em feira a acenar aos pensionistas com aumentos que das duas uma: ou davam cabo da sustentabilidade financeira da segurança social ou, ao desvalorizar o esforço daqueles que mais contribuíram, comprometiam a equidade interna ao sistema de pensões.
Mas, uma vez no poder, com o auxílio do primeiro relatório Constâncio, o discurso das promessas foi transformando em tanga. Do optimismo demagógico da campanha, Durão Barroso evoluiu para um pessimismo que se revelou trágico para a confiança dos agentes económicos. Tudo acompanhado por uma política orçamental que estrangulou o investimento e, claro, não resolveu nenhum problema, nem do lado da despesa, nem do lado da receita. No fim de cada ano, enquanto se faziam juras de que a retoma estava a caminho, lá vinham as manigâncias e os malabarismos contabílisticos. Claro que o relatório Constâncio II não poderia surpreender: a consolidação orçamental ficou por fazer.
Acontece que as contas públicas não são uma abstracção instrumental para a guerrilha política. Pelo contrário, o défice tem efeitos sociais, económicos e também políticos. A forma desastrosa como o anterior governo geriu as contas públicas explica a crise da nossa economia, o disparar do desemprego e a mudança de governo três anos depois das eleições. O governo de Durão Barroso caiu na armadilha da tanga. Usou o défice como arma de arremesso e não mais se livrou do uso instrumental que quis dar às contas públicas. Tinha um problema, amplificou-o e quando procurou resolvê-lo já não tinha à mão alguns dos poucos instrumentos que ainda sobram aos governos. Pelo caminho, deu mais uma machadada na credibilidade da classe política, ao meter na gaveta as promessas feitas durante a campanha eleitoral.
Três anos de oposição, espera-se, terão ensinado diversas coisas ao Partido Socialista – entre elas os riscos da armadilha da tanga. Desse ponto de vista, a campanha eleitoral deu sinais positivos. Antes de mais, pela sensibilidade demonstrada por José Sócrates à estrutura social portuguesa. É que, pura e simplesmente, o país não aguenta soluções draconianas, que procuram resolver de uma assentada problemas com lastro histórico. Depois, porque o PS não optou pela solução fácil de levar a cabo um acerto de contas com o passado recente, combinado com uma plataforma eleitoral assente em promessas demagógicas. O caminho seguido foi o da razoabilidade política: realismo na definição do problema e afirmação da diferença em áreas chaves para o desenvolvimento. Daí que tenha sido sublinhado que a obsessão com o défice tem como resultado dar cabo da economia, ao mesmo tempo que não resolve nenhum problema nas finanças.
Deste discurso decorre, naturalmente, que a nesga (estreita) de oportunidade para o país reside no investimento em áreas estratégicas para aumentar o potencial de crescimento e na consolidação de uma almofada social que minore o impacto da absolutamente necessária (e sempre adiada) reestruturação do padrão de especialização da economia portuguesa. Mas isso foi durante a campanha. Uma vez no governo, a gestão política do problema é bem mais complexa. Por tudo isto, hoje é o primeiro dia verdadeiramente decisivo do novo governo. Tem de ser um dia de clarificação e de rumo para o futuro.
É claro que a resolução da equação orçamental é difícil. O que está em jogo não é nem uma questão tecnocrática, nem académica e muito menos contabilística. Pelo contrário, é um problema político sério, tão ou mais sério do que aquele que o bloco central – tantas vezes injustamente criticado – enfrentou. E os problemas políticos requerem sensibilidade política e sensibilidade tout court. Quem tenha lido com atenção os sinais dados em fugas para a imprensa nas últimas semanas, rapidamente percebe que sensibilidade é algo que existe em doses desiguais no seio do governo.
Entre outras coisas, é essencial evitar cair na armadilha da tanga e com ela repetir os erros do passado. A tentação tem sido grande nos últimos dias. Mas esta opção, como ficou provado, não só não resolveu nenhum dos problemas existentes, como até teve o condão de acrescentar novos àqueles que já existiam. Contudo, as situações difíceis representam também oportunidades. O constrangimento orçamental pode servir para resolver problemas pesados que o país enfrenta, designadamente pondo fim a situações de privilégio relativo da função pública, que são hoje injustificadas. Mas o que há a fazer tem de ser feito com sensibilidade microscópica e percebendo que a receita macroeconómica, tão sedutora no papel, de cortar cegamente na despesa, aumentando indiscriminadamente a pressão na receita, trará os mesmos resultados dos últimos três anos. Para resolver o problema do défice há que, a partir de amanhã, deixar de falar do défice. Repetir a história, já não seria uma tragédia, mas, sim, uma farsa.
publicado em A Capital
Sabemos hoje o que se passou em 2002. Uma campanha eleitoral em que o então candidato Durão Barroso prometeu tudo a todos, isto enquanto falava de um défice próximo do do Burundi. Ao mesmo tempo, o seu futuro parceiro de coligação andava de feira em feira a acenar aos pensionistas com aumentos que das duas uma: ou davam cabo da sustentabilidade financeira da segurança social ou, ao desvalorizar o esforço daqueles que mais contribuíram, comprometiam a equidade interna ao sistema de pensões.
Mas, uma vez no poder, com o auxílio do primeiro relatório Constâncio, o discurso das promessas foi transformando em tanga. Do optimismo demagógico da campanha, Durão Barroso evoluiu para um pessimismo que se revelou trágico para a confiança dos agentes económicos. Tudo acompanhado por uma política orçamental que estrangulou o investimento e, claro, não resolveu nenhum problema, nem do lado da despesa, nem do lado da receita. No fim de cada ano, enquanto se faziam juras de que a retoma estava a caminho, lá vinham as manigâncias e os malabarismos contabílisticos. Claro que o relatório Constâncio II não poderia surpreender: a consolidação orçamental ficou por fazer.
Acontece que as contas públicas não são uma abstracção instrumental para a guerrilha política. Pelo contrário, o défice tem efeitos sociais, económicos e também políticos. A forma desastrosa como o anterior governo geriu as contas públicas explica a crise da nossa economia, o disparar do desemprego e a mudança de governo três anos depois das eleições. O governo de Durão Barroso caiu na armadilha da tanga. Usou o défice como arma de arremesso e não mais se livrou do uso instrumental que quis dar às contas públicas. Tinha um problema, amplificou-o e quando procurou resolvê-lo já não tinha à mão alguns dos poucos instrumentos que ainda sobram aos governos. Pelo caminho, deu mais uma machadada na credibilidade da classe política, ao meter na gaveta as promessas feitas durante a campanha eleitoral.
Três anos de oposição, espera-se, terão ensinado diversas coisas ao Partido Socialista – entre elas os riscos da armadilha da tanga. Desse ponto de vista, a campanha eleitoral deu sinais positivos. Antes de mais, pela sensibilidade demonstrada por José Sócrates à estrutura social portuguesa. É que, pura e simplesmente, o país não aguenta soluções draconianas, que procuram resolver de uma assentada problemas com lastro histórico. Depois, porque o PS não optou pela solução fácil de levar a cabo um acerto de contas com o passado recente, combinado com uma plataforma eleitoral assente em promessas demagógicas. O caminho seguido foi o da razoabilidade política: realismo na definição do problema e afirmação da diferença em áreas chaves para o desenvolvimento. Daí que tenha sido sublinhado que a obsessão com o défice tem como resultado dar cabo da economia, ao mesmo tempo que não resolve nenhum problema nas finanças.
Deste discurso decorre, naturalmente, que a nesga (estreita) de oportunidade para o país reside no investimento em áreas estratégicas para aumentar o potencial de crescimento e na consolidação de uma almofada social que minore o impacto da absolutamente necessária (e sempre adiada) reestruturação do padrão de especialização da economia portuguesa. Mas isso foi durante a campanha. Uma vez no governo, a gestão política do problema é bem mais complexa. Por tudo isto, hoje é o primeiro dia verdadeiramente decisivo do novo governo. Tem de ser um dia de clarificação e de rumo para o futuro.
É claro que a resolução da equação orçamental é difícil. O que está em jogo não é nem uma questão tecnocrática, nem académica e muito menos contabilística. Pelo contrário, é um problema político sério, tão ou mais sério do que aquele que o bloco central – tantas vezes injustamente criticado – enfrentou. E os problemas políticos requerem sensibilidade política e sensibilidade tout court. Quem tenha lido com atenção os sinais dados em fugas para a imprensa nas últimas semanas, rapidamente percebe que sensibilidade é algo que existe em doses desiguais no seio do governo.
Entre outras coisas, é essencial evitar cair na armadilha da tanga e com ela repetir os erros do passado. A tentação tem sido grande nos últimos dias. Mas esta opção, como ficou provado, não só não resolveu nenhum dos problemas existentes, como até teve o condão de acrescentar novos àqueles que já existiam. Contudo, as situações difíceis representam também oportunidades. O constrangimento orçamental pode servir para resolver problemas pesados que o país enfrenta, designadamente pondo fim a situações de privilégio relativo da função pública, que são hoje injustificadas. Mas o que há a fazer tem de ser feito com sensibilidade microscópica e percebendo que a receita macroeconómica, tão sedutora no papel, de cortar cegamente na despesa, aumentando indiscriminadamente a pressão na receita, trará os mesmos resultados dos últimos três anos. Para resolver o problema do défice há que, a partir de amanhã, deixar de falar do défice. Repetir a história, já não seria uma tragédia, mas, sim, uma farsa.
publicado em A Capital
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