A guerra é a guerra
There is a war between the ones who say there is a war
and the ones who say there isn't.
Leonard Coen, “there is a war” (1974)
Os atentados de Londres demonstraram, se tal fosse ainda necessário, que o mundo está em guerra. Uma guerra com contornos diferentes das do passado, mas onde há dois campos bem delimitados, correspondentes a duas ideias de sociedade. De um lado, sociedades com defeitos, mas baseadas no predomínio da lei. Do outro, a barbárie e o livre arbítrio como regime. Provavelmente a guerra até já existia antes, mas com o ataque às Twin Towers mostrou a sua face. E fê-lo com um objectivo claro: instaurar o medo nas sociedades das democracias ocidentais e obrigá-las a jogar com regras de jogo que não são, por natureza, as suas. Se a Al-Qaeda tem um objectivo é, sem dúvida, o de contaminar o nosso modo de vida com os seus princípios. Cabe-nos a nós impedir que isso aconteça.
É por isso que, desde Nova Iorque, a parte do mundo que se vê atacada pelo terrorismo – seja em Kuta na ilha de Bali ou no metro em Londres – tem de saber resistir à tentação de jogar o jogo dos que fazem do terror a única arma. Para tal é preciso que, em nenhum momento, se deixe de utilizar a razão. Infelizmente, desde que a barbárie passou a manifestar-se de forma global, nem sempre a resposta dada foi a mais inteligente.
É que jogar o jogo dos terroristas é, a um tempo, sedutor e fácil. Sedutor porque permite ao poder político dar um sinal de força, imediato e visível, mas que corre o risco de ser inconsequente ou até contraproducente. Trata-se, no fundo, de uma espécie de reflexo condicionado em que o país atacado responde atacando. Esta opção esquece as raízes globais da nova guerra e a sua desnacionalização. Do mesmo modo que os ataques a Nova Iorque, Bali, Madrid ou Londres não foram apenas ataques aos lugares geográficos onde ocorreram, também a resposta a dar não se pode circunscrever a espaços físicos delimitados. A resposta ao terrorismo não pode ser levada a cabo por um único Estado, por mais poderoso que este seja. Mas jogar o jogo dos terroristas pode também passar por seguir o caminho fácil. Um caminho de diminuição das liberdades em que se baseiam as nossas sociedades ou de alteração dos nossos estilos de vida. Fazê-lo seria ceder às pressões da Al-Qaeda.
Desse ponto de vista, os londrinos tiveram um comportamento exemplar. Logo após os atentados, retomaram as suas vidas, utilizando os transportes públicos e mostrando que, mais uma vez na sua história, não estão dispostos a alterar os seus hábitos e que não cederão ao totalitarismo. Aliás, vale a pena, a este propósito, recordar as palavras do Presidente da Câmara de Londres, Ken Livingstone, dirigidas aos terroristas: “mesmo depois dos vossos ataques cobardes, continuarão a ver pessoas de todo o mundo a vir para Londres para concretizarem os seus sonhos”.
Mas se na resposta a dar ao terrorismo, o mundo ocidental tem divergido, há uma outra dimensão em que não podemos, em momento algum, mostrar dissonâncias: na noção de que estamos em guerra e de que não é o facto dos ataques terem ocorrido em Madrid ou Londres que faz com que estejamos livres ou não sejamos vítimas. Os ataques sistemáticos estão aí para recordar que quem está a ser atacado é um modo de vida e um modelo de sociedade.
Não é, certamente, por coincidência que os maiores ataques ocorreram nas cidades mais cosmopolitas. Cidades em que a miscigenação mais avançou e onde a tolerância e a liberdade têm raízes mais sólidas: Nova Iorque, Londres, Madrid ou até Kuta, lugar por excelência do hedonismo e do encontro pacífico entre dois mundos. Este facto, aliás, só demonstra que o que está em causa não é nenhuma espécie de luta de classes, de oprimidos contra as tenebrosas forças do imperialismo ou uma luta pela terra, de nações sem Estado. É uma guerra contra o valor mais precioso das sociedades ocidentais: a liberdade.
Acontece que não temos ao nosso dispor “armas” suficientemente eficazes para enfrentar esta batalha. No fundo, um pouco como com os cataclismos naturais – aos quais não podemos pôr fim –, temos de nos habituar a viver com o terrorismo, ainda que possamos conseguir com relativo sucesso minorar as suas consequências.
E a verdade é que a Al-Qaeda está mais frágil. Apesar da brutalidade dos últimos atentados, depois da invasão do Afeganistão, a organização parece ter hoje uma menor capacidade de coordenação. Mas depois do Iraque, parece ter uma base de recrutamento maior. Talvez essa seja parte da razão para que haja mais ataques, que, contudo, surtem menos efeito do que aqueles que os antecederam. Não é irrelevante que tenha morrido menos gente em Londres que em Madrid e menos gente em Madrid do que em Nova Iorque. De acordo com os padrões dos terroristas, isto só pode ser encarado como um fracasso. Naturalmente que para os nossos padrões, qualquer morte é uma brutalidade em absoluto.
Se há algo que ficou claro das várias experiências totalitárias do século XX é que o mal não pode ser justificado, deve ser combatido. O que não impede que sejam dados passos que, é bom que fique claro, não têm a ver com as causas do terrorismo, mas que ajudarão a retirar justificações aos terroristas. Se mais pretextos fossem necessários, depois de Londres, é altura de se caminhar com vista à paz entre Israel e a Palestina e incentivar a implementação do Estado de direito um pouco por todo o Médio Oriente.
Publicado em A Capital
and the ones who say there isn't.
Leonard Coen, “there is a war” (1974)
Os atentados de Londres demonstraram, se tal fosse ainda necessário, que o mundo está em guerra. Uma guerra com contornos diferentes das do passado, mas onde há dois campos bem delimitados, correspondentes a duas ideias de sociedade. De um lado, sociedades com defeitos, mas baseadas no predomínio da lei. Do outro, a barbárie e o livre arbítrio como regime. Provavelmente a guerra até já existia antes, mas com o ataque às Twin Towers mostrou a sua face. E fê-lo com um objectivo claro: instaurar o medo nas sociedades das democracias ocidentais e obrigá-las a jogar com regras de jogo que não são, por natureza, as suas. Se a Al-Qaeda tem um objectivo é, sem dúvida, o de contaminar o nosso modo de vida com os seus princípios. Cabe-nos a nós impedir que isso aconteça.
É por isso que, desde Nova Iorque, a parte do mundo que se vê atacada pelo terrorismo – seja em Kuta na ilha de Bali ou no metro em Londres – tem de saber resistir à tentação de jogar o jogo dos que fazem do terror a única arma. Para tal é preciso que, em nenhum momento, se deixe de utilizar a razão. Infelizmente, desde que a barbárie passou a manifestar-se de forma global, nem sempre a resposta dada foi a mais inteligente.
É que jogar o jogo dos terroristas é, a um tempo, sedutor e fácil. Sedutor porque permite ao poder político dar um sinal de força, imediato e visível, mas que corre o risco de ser inconsequente ou até contraproducente. Trata-se, no fundo, de uma espécie de reflexo condicionado em que o país atacado responde atacando. Esta opção esquece as raízes globais da nova guerra e a sua desnacionalização. Do mesmo modo que os ataques a Nova Iorque, Bali, Madrid ou Londres não foram apenas ataques aos lugares geográficos onde ocorreram, também a resposta a dar não se pode circunscrever a espaços físicos delimitados. A resposta ao terrorismo não pode ser levada a cabo por um único Estado, por mais poderoso que este seja. Mas jogar o jogo dos terroristas pode também passar por seguir o caminho fácil. Um caminho de diminuição das liberdades em que se baseiam as nossas sociedades ou de alteração dos nossos estilos de vida. Fazê-lo seria ceder às pressões da Al-Qaeda.
Desse ponto de vista, os londrinos tiveram um comportamento exemplar. Logo após os atentados, retomaram as suas vidas, utilizando os transportes públicos e mostrando que, mais uma vez na sua história, não estão dispostos a alterar os seus hábitos e que não cederão ao totalitarismo. Aliás, vale a pena, a este propósito, recordar as palavras do Presidente da Câmara de Londres, Ken Livingstone, dirigidas aos terroristas: “mesmo depois dos vossos ataques cobardes, continuarão a ver pessoas de todo o mundo a vir para Londres para concretizarem os seus sonhos”.
Mas se na resposta a dar ao terrorismo, o mundo ocidental tem divergido, há uma outra dimensão em que não podemos, em momento algum, mostrar dissonâncias: na noção de que estamos em guerra e de que não é o facto dos ataques terem ocorrido em Madrid ou Londres que faz com que estejamos livres ou não sejamos vítimas. Os ataques sistemáticos estão aí para recordar que quem está a ser atacado é um modo de vida e um modelo de sociedade.
Não é, certamente, por coincidência que os maiores ataques ocorreram nas cidades mais cosmopolitas. Cidades em que a miscigenação mais avançou e onde a tolerância e a liberdade têm raízes mais sólidas: Nova Iorque, Londres, Madrid ou até Kuta, lugar por excelência do hedonismo e do encontro pacífico entre dois mundos. Este facto, aliás, só demonstra que o que está em causa não é nenhuma espécie de luta de classes, de oprimidos contra as tenebrosas forças do imperialismo ou uma luta pela terra, de nações sem Estado. É uma guerra contra o valor mais precioso das sociedades ocidentais: a liberdade.
Acontece que não temos ao nosso dispor “armas” suficientemente eficazes para enfrentar esta batalha. No fundo, um pouco como com os cataclismos naturais – aos quais não podemos pôr fim –, temos de nos habituar a viver com o terrorismo, ainda que possamos conseguir com relativo sucesso minorar as suas consequências.
E a verdade é que a Al-Qaeda está mais frágil. Apesar da brutalidade dos últimos atentados, depois da invasão do Afeganistão, a organização parece ter hoje uma menor capacidade de coordenação. Mas depois do Iraque, parece ter uma base de recrutamento maior. Talvez essa seja parte da razão para que haja mais ataques, que, contudo, surtem menos efeito do que aqueles que os antecederam. Não é irrelevante que tenha morrido menos gente em Londres que em Madrid e menos gente em Madrid do que em Nova Iorque. De acordo com os padrões dos terroristas, isto só pode ser encarado como um fracasso. Naturalmente que para os nossos padrões, qualquer morte é uma brutalidade em absoluto.
Se há algo que ficou claro das várias experiências totalitárias do século XX é que o mal não pode ser justificado, deve ser combatido. O que não impede que sejam dados passos que, é bom que fique claro, não têm a ver com as causas do terrorismo, mas que ajudarão a retirar justificações aos terroristas. Se mais pretextos fossem necessários, depois de Londres, é altura de se caminhar com vista à paz entre Israel e a Palestina e incentivar a implementação do Estado de direito um pouco por todo o Médio Oriente.
Publicado em A Capital
<< Home