quarta-feira, julho 06, 2005

O Estado do Governo

Depois do debate de hoje do orçamento rectificativo, amanhã, com o debate do Estado da Nação, o país político parte para umas férias de que está bem necessitado. Naturalmente que quem parte para férias é a política, não o país. A nação continuará com os mesmos problemas e seguirá o seu passo, distante e alienada do que se passa na política. Aliás, é isto que faz com que o debate de amanhã se apelide erradamente de estado da nação. O que se discutirá, na verdade, é o estado do governo. Neste contexto, pouco mais de cem dias após a tomada de posse é já nítida a imagem deste governo. As suas principais virtudes, mas, também, as suas fragilidades.
Porventura o aspecto mais positivo da acção do executivo de José Sócrates tem sido a coragem. A coragem de governar sem cuidar dos ciclos políticos, mas tendo como preocupação primeira o interesse comum. Curiosamente, esta opção tem sido, sistematicamente, alvo de discursos cépticos. Ainda há pouco tempo, o governo era acusado de definir os seus timings tendo em conta o calendário das eleições autárquicas. De acordo com esta crítica, até Outubro, José Sócrates surfaria a onda de popularidade que lhe advinha do resultado das legislativas. Após as autárquicas, então sim, começaria a lançar as políticas difíceis, que poriam fim ao estado de graça. Acontece que não é isto que se tem passado.
Com o discurso de tomada de posse e de modo ininterrupto desde então, José Sócrates tem optado por “pegar o touro de caras”. Sendo que o touro aqui é, no essencial, o conjunto de situações de privilégio relativo que persistiam em Portugal e que coexistiam com profundas desigualdades e com a debilidade generalizada das nossas estruturas sociais.
Obviamente que esta opção traz consigo um sem número de problemas. À cabeça, o facto de, ao confrontar todos os grupos ao mesmo tempo, o governo delapidar progressivamente a sua base de apoio. É que uma coisa é, por exemplo, num dado momento, enfrentar os interesses dos professores, mantendo uma relação privilegiada com o conjunto dos funcionários públicos. Outra, completamente diferente, é enfrentar, simultaneamente, os interesses dos professores, dos médicos, dos enfermeiros, dos polícias e até da própria classe política. Abrir muitas frentes de batalha é uma jogada arriscada.
No entanto, o caminho maximalista seguido pelo governo, sendo de enorme risco, é também aquele que melhores resultados pode trazer. Se estivéssemos a falar de um jogo de poker, poder-se-ia dizer que o governo “encavou” logo de início. Se a jogada correr bem, os adversários ficarão sem argumentos e sem “fichas” para apostar doravante. Se correr mal, a derrota eleitoral é uma inevitabilidade. Convém, contudo, lembrar que governar por governar de nada serve. Se os governos podem ambicionar mudar alguma coisa é, exactamente, quando arriscam e não quando vivem na angústia das consequências imediatas dos seus passos. O governo escolheu arriscar.
Contudo, a jogada de risco acarreta outros problemas. Quando se fala de medidas impopulares, quem aparece a dar a cara é invariavelmente José Sócrates. Em consequência, sobre ele tem recaído o essencial do ónus dessas medidas. Este facto tem servido para revelar alguma fragilidade do executivo. O número acentuado de ministros sem perfil político, que foi inicialmente visto como uma mais valia (nomeadamente por vivermos um contexto de desconfiança generalizada face à classe política), tem-se tornado um problema para a gestão quotidiana da impopularidade. Desse ponto de vista, entre os ministros “não políticos”, a Ministra da Educação tem sido uma excepção positiva.
Mas, 100 dias depois, a principal debilidade deste governo radica no facto de ter contribuído para dar razão àqueles que criticam a política por esta se encontrar dominada pelo “efeito espelho”. Muda o governo e o que antes era criticado pela oposição passa a ser criticado pela nova oposição, que antes era governo. Mudam as posições relativas, mas o discurso mantém-se. A subida dos impostos é disto exemplo. Independentemente, de se saber se era ou não inevitável tomar esta opção, a verdade é que se trata de uma decisão que contraria o que foi afirmado pelo PS, no passado e durante a campanha eleitoral. José Sócrates, com coragem, assumiu essa contradição e justificou-a com os valores inesperados do desequilíbrio das contas públicas. Mas, a verdade é que a ideia de que os políticos dizem uma coisa quando não têm responsabilidades e outra quando têm, tornou-se um pouco mais sólida. Para a democracia, há poucas coisas mais perniciosas.
No deve e haver do estado do governo, o executivo de José Sócrates tem, na altura do seu primeiro estado da nação, uma contabilidade claramente positiva e ainda uma significativa margem de manobra perante os portugueses. Depois do Verão, com as autárquicas e com as presidenciais, tudo pode mudar. Mais uma razão para que o governo aproveite estes tempos para fazer agora o que daqui a uns tempos se tornará mais difícil. Entretanto, se o estado do governo continuar a ser ditado pelo estado da nação e não pelas consequências eleitorais da governação, todos teremos a ganhar.
P.S. as declarações do Dr. João Jardim a propósito dos imigrantes não surpreendem. Afinal, ciclicamente, o Dr. João Jardim vocifera umas imbecilidades. Há contudo, uma novidade. Agora, os ciclos são mais curtos e o espaço entre imbecilidades menor. É sinal de decadência e quer dizer que provavelmente o seu fim político se aproxima.
publicado em A Capital