quarta-feira, julho 27, 2005

De novo, o tempo da coragem

Até este fim de semana, José Sócrates insistiu em secundarizar as eleições presidenciais. De acordo com o Primeiro-Ministro, o assunto não estava na agenda política imediata. Um erro de avaliação. Não apenas a sucessão de acontecimentos da última semana se encarregou de demonstrar que, de facto, não era assim, como a próxima eleição presidencial é decisiva para o futuro do actual Governo.
O que se passou desde Março passado é revelador do que se passará daqui para a frente. Quando tomou posse, o Governo beneficiou de um “estado de graça” que não encontra paralelo nos tempos mais recentes. As primeiras medidas de austeridade, bem como aquelas que visavam pôr fim a privilégios relativos, foram aplaudidas com uma inusitada unanimidade. Contudo, mal se passou dos discursos à prática e quando os portugueses sentiram a austeridade na pele, o “estado de graça” terminou. Ainda assim, a legitimidade do Governo mantém-se em alta. Hoje, José Sócrates tem todas as condições objectivas e subjectivas para governar. Resta saber se será assim depois do Verão.
É que o resultado das eleições autárquicas não deixará de ter repercussões no executivo. E, desse ponto de vista, o que se vislumbra não é positivo. Ainda que seja verdade que o Governo vale bem mais do que o conjunto dos candidatos autárquicos do Partido Socialista, um mau resultado em Outubro abalará a capacidade do executivo para prosseguir, sem desvios, o seu caminho. Se à contestação social que se vive juntarmos uma derrota eleitoral autárquica, o cenário da governação pode começar a mudar.
Neste contexto, as Presidenciais serão um marco decisivo. Das duas uma: ou o bloco social e político que apoia o Governo sofre uma derrota e o executivo vê diminuída a sua capacidade política – e, em última análise, pode não cumprir o mandato até ao fim – ou, pelo contrário, reconquista legitimidade para continuar as necessárias políticas de austeridade. Os dois candidatos que se vislumbram representam, pelos seus perfis, claramente, os dois lados desta moeda. Cavaco Silva será um factor de instabilidade. Mário Soares, pelo contrário, uma garantia de que o Governo poderá continuar a pôr em prática o seu programa. Como diria Pacheco Pereira, “só não vê quem não quer ver”.
Não por acaso, mal foi conhecida a disponibilidade de Mário Soares em avançar, alguns dos apoiantes de Cavaco Silva vieram sublinhar que o “professor” seria um garante de estabilidade. A preocupação é justificada. Quando escolherem o Presidente, os portugueses quererão alguém capaz de assegurar estabilidade governativa, ao mesmo tempo que mantém autonomia face ao Governo. Ora Cavaco tem autonomia, mas tem também um perfil interventivo e executivo. Consequentemente, se eleito, tenderá a ceder à tentação de governar pelo Governo, isto enquanto a oposição de direita procurará guarida debaixo da capa protectora de Belém. Numa altura em que a economia, as finanças e a sociedade portuguesa enfrentam sérias dificuldades, a última coisa que o País precisava era que, a este contexto, se somasse instabilidade política de facto ou em potência. Com Cavaco Silva este risco seria real – por mais que se tente afirmar o contrário.
Mário Soares, pelo contrário, garantirá solidariedade com o essencial da acção governativa, enquanto, pelo seu peso político próprio, terá também autonomia perante o Governo. Se os portugueses querem que o Governo tenha condições para governar, e pretendem em Belém alguém que, zelando por essas condições, não deixe, contudo, de ter uma voz independente, têm em Soares o perfil indicado.
Claro que Soares não é um jovem e essa é, porventura, a maior dificuldade da sua candidatura. Mas uma coisa é a idade no B.I., outra, completamente diferente, é a energia e a vontade de ir à luta. Se pensarmos nestes termos, Soares vence Cavaco em toda a linha. Soares é um combatente político e os combatentes combatem, não se perdem em medos, hesitações ou jogos tácticos. Até porque, de uma coisa não tenhamos dúvidas, seria muito mais confortável para Mário Soares não correr o risco de disputar eleições, mantendo-se no sossego da sua própria história.
Por tudo isto, se, até aqui, a gestão de silêncios era uma boa táctica para Cavaco, a partir do momento que há uma candidatura no terreno deixa de ser assim – ainda para mais perante o potencial mobilizador da de Soares. Cada semana que passa sem que Cavaco venha a jogo, sai reforçada a ideia de que está a repetir os tabus que foram a sua imagem de marca. Cada semana que passa, Cavaco reforça a ideia de estar hesitante e temerário e que se aceitar ser candidato o fará para satisfazer as expectativas entretanto criadas entre os seus apoiantes. Da última vez que tal aconteceu, a consequência foi uma derrota nas urnas.
Mas há uma outra dimensão fundamental em Mário Soares. A coragem é o seu traço de carácter distintivo, como aliás revela a disponibilidade para se candidatar. E coragem é algo determinante para contrariar a canalhice institucionalizada que o país tem vivido no último par de anos e que tem servido, entre outras coisas, para minar a credibilidade do Estado de Direito. Com Soares teremos uma garantia: não viverá atemorizado com as consequências das suas próprias decisões. E, hoje como no passado, os tempos estão para aqueles que têm coragem.
publicado em A Capital