quarta-feira, julho 20, 2005

Passar mais tempo na praia

A responsabilização dos trabalhadores portugueses pelo mau comportamento da nossa economia é recorrente. Não passa uma semana sem que alguém lhes aponte o dedo. Não é novidade. Desta feita, em declarações reproduzidas pelo Expresso, Fernando Ulrich, presidente do Banco Português de Investimento (BPI), enquanto partilhava a justificada preocupação com o facto da economia portuguesa estar há uma série de anos com um crescimento medíocre, sublinhava que «os portugueses não estão mobilizados ou preocupados com a competitividade». Entre outras razões porque, em lugar de trabalharem para colocar a economia a crescer, quererem antes «passar mais tempo na praia».
Se é verdade que parte importante dos nossos males tem a ver com a fraca produtividade da nossa força de trabalho, resta saber se tal ocorre porque os portugueses passam muito tempo na praia. Temos um problema de produtividade, mas será que devemos procurar nas idas para a praia, na relação com o lazer, as suas causas? Ou, pelo contrário, a economia portuguesa padece de males que se manifestam no facto de só tardiamente os portugueses terem começado a ir à praia?
A ideia da praia como lugar de “peregrinação” não é nem muito antiga, nem muito recente. Entre nós ter-se-á popularizado nos últimos tempos (sobre a quase ausência de cultura de praia em Portugal, no início do século XX, veja-se “As Praias de Portugal”, de Ramalho Ortigão), mas, certamente não por acaso, foi no século XVIII, no Reino Unido, que terá surgido. Primeiro como alternativa às estâncias termais e, só depois, como espaço de lazer. Muito por força do movimento romântico, a praia, de local de trabalho duro para uns e de espaço termal para outros, transformou-se em lugar idílico, onde nos espraiamos. No início do século XX, o Reino Unido tinha estâncias balneares um pouco por todo o lado e uma cultura de praia pronta a ser exportada. Paradoxalmente, um país com um clima pouco propício era aquele onde a praia mais se havia implementado. Paradoxalmente, não. O berço do capitalismo era também o lugar onde os espaços dedicados ao hedonismo mais se desenvolviam.
A popularização da praia caminha lado a lado com o desenvolvimento do capitalismo, pelo que se em Portugal só nos últimos trinta anos se massificaram as idas à praia, tal indicia, antes de mais, a fragilidade genética do nosso modelo económico. O problema não está, por isso, nos portugueses passarem a vida a querer ir à praia. O problema está, antes de mais, no facto de o padrão de especialização da economia portuguesa ser de tal modo atrasado que não foi capaz de permitir atempadamente o desenvolvimento de uma cultura de praia. Na verdade, a praia está associada às transformações sociais típicas do capitalismo e, nesse aspecto, Portugal tem um grande problema.
Contudo, a praia tem também a particularidade de se distinguir dos restantes locais de lazer. Por se tratar do espaço por excelência das aventuras juvenis é naturalmente popular na idade adulta, quando tudo fazemos para regressar ao tempo em que “éramos crianças”. Na praia, os constrangimentos são bem menores do que nos outros espaços públicos: por exemplo, pode-se vestir o que se quer (ou mesmo nada). Para mais, entretanto, os desportos radicais aí praticados, designadamente o surf, tornaram-se muito populares, o que fez com que a associação entre praia e escape se tivesse intensificado - basta pensar na quantidade de publicidade baseada nesta ideia.
Mas, acima de tudo, a praia distingue-se dos outros espaços por funcionar como contraponto ao resto da vida. Num curioso ensaio publicado há mais de um ano na revista Prospect, Charles Leadbeater chamava a atenção precisamente para os aspectos que fazem das praias espaços públicos modelares, onde a auto-regulação cívica impera.
É que, na praia, nem as regras dominantes na sociedade, nem os mecanismos tradicionais de autoridade se aplicam. As praias são locais ordeiros, mas, contrariamente ao habitual, isso acontece com poucos mecanismos de controlo impostos. Não existe ninguém encarregado da organização do espaço e esta ocorre espontaneamente – não há lugares previamente definidos para se ficar e, em última análise, cada um estende a toalha onde quer, respeitando o vizinho. A ordem emerge de forma relativamente espontânea e a tolerância e a boa disposição são predominantes. Salvo excepções, não há conflitos, nem sobre o local a ocupar, nem sobre o ruído que cada um faz. Tal acontece não como a concretização de qualquer sonho de dirigismo estatal, nem em resultado do funcionamento desregulado do mercado, mas, sim, como resultado da auto-organização e da vontade livre.
Para além do mais, nas praias, as pessoas tendem a não se comportar normalmente – por exemplo, lêem muito mais do que o habitual, juntando prazer e aprendizagem, de um modo que não encontra paralelo nas suas vidas profissionais. Claro que a visão idílica da praia tem um lado sombrio e, por isso, esta tem sido, frequentemente, cenário para algumas das mais populares distopias: “Lord of the Flies” e, mais recentemente, “A Praia” de Alex Garland.
Por tudo isto, o facto de os portugueses passarem muito tempo na praia não é um problema. Pelo contrário, a cultura da praia deveria contaminar mais o resto da nossa vida e em particular o nosso modelo económico. A praia é provavelmente o lugar onde mais perto estivemos de concretizar um modelo de sociedade auto-organizado, baseado no civismo e sem que seja necessária a mão-pesada do Estado ou, em alternativa, a competição desregulada do mercado. Na praia ganha corpo a terceira-via. Uma terceira via que naturalmente causa desconforto aos empresários portugueses.
publicado em A Capital