segunda-feira, setembro 16, 2013

Desta vez é diferente


Quando os porta-vozes da coligação afirmam que estamos a iniciar um “novo ciclo”, não se chega a perceber se nos estão a enganar a todos nós ou se se estão a enganar a eles próprios.
É evidente que a remodelação tem aspectos positivos que saltam à vista. Não só se corrige o absurdo orgânico que foi o “Governo enxuto”, uma ideia que só podia ter vindo da cabeça impreparada de Passos Coelho, como os ministros que entram acrescentam maturidade política ao executivo. Mas é um daqueles casos em que, se por um lado o mal já está feito, por outro, as razões que detonaram esta estrondosa crise continuam todas por resolver. Não é por se varrer os problemas para baixo do tapete que eles desaparecem. Podemos estar perante ganhos conjunturais – a “coesão e solidez” que o Presidente garantiu vislumbrar– mas que rapidamente se tornarão uma ilusão.
Aliás, se recuarmos 3 semanas somos capazes de ver com uma nitidez que entretanto se desvaneceu as razões desta crise política. Na verdade, estão expressas com notável clareza na insólita carta de demissão de Vítor Gaspar: incapacidade de consensualizar no conselho de ministros os cortes acordados com a troika e ausência de liderança política do Primeiro-ministro. Depois da demissão do Ministro das Finanças, até então primeiro-ministro de facto, Paulo Portas, quando percebeu que a nova ministra significava uma continuação da linha Gaspar mas em piores condições, demitiu-se. Podemos, hoje, perguntar: algum destes problemas foi ultrapassado? Ou, está o Governo em melhores condições para superar os seus bloqueios internos?
A resposta é não. Bem pode o Governo alimentar a ilusão de um novo ciclo, mas a realidade encarregar-se-á de regressar a galope, defraudando as expectativas que Passos e Portas alimentaram. Não há nenhum motivo para acreditarmos que desta vez será diferente.
Um “novo ciclo” de crescimento e investimento é, desde logo, incompatível com a austeridade já acordada para 2014 na 7ª avaliação do memorando – uma austeridade que só na inclinação otimista das previsões não se traduz já num anúncio de continuação da espiral recessiva. Os 0.3% de crescimento do produto que o Banco de Portugal ainda prevê para 2014, a manterem-se os cortes para o ano e o falhanço da execução orçamental de 2013 (que implicará um esforço adicional no exercício de 2014, que se encarregará de comer qualquer nova margem para o défice que venha a ser negociada), acabarão por ser revistos em baixa.
Hoje sabemos que o pavor dos aparelhos partidários em se verem afastados do poder ajudou a cerrar fileiras em torno de um líder falhado e desautorizado pelo Presidente (Passos) e vergou um que se quis demitir (Portas), mas continuamos sem saber como é que o orçamento para 2014 vai ser elaborado, em que é que assentará a mirífica reforma do Estado, para além de uma lista detalhada de cortes, e como é que vai resistir uma Ministra das Finanças que nasceu frágil e tem a pairar sobre si a espada de Dâmocles que é a comissão de inquérito aos swaps. O Governo superou as tormentas, mas a tempestade ainda não passou.

publicado no Expresso de 13 de Julho

Para início de conversa


Esta semana o Banco de Portugal divulgou o seu boletim de verão. Aparentemente, trata-se de um episódio lateral à negociação que, quando escrevo, ainda decorre entre PSD/CDS/PS. Nada de mais errado. Por si só, o que o BdP nos diz deveria suspender, de imediato, o corte de 4,7 mil milhões de euros previsto para 2014, corte esse que além de politicamente inviável é economicamente estúpido.
Sobre a inviabilidade política, as últimas semanas foram esclarecedoras. Cortes desta grandeza, numa economia deprimida e com o mercado de trabalho esfrangalhado, terão um impacto difícil de antecipar, mas de consequências devastadoras nas instituições do regime. A turbulência política das últimas semanas é apenas uma pequena amostra do que pode estar para vir, com o desemprego a manter-se nos 20%. Quem desejar fragmentar o sistema político que construímos, com muitas debilidades, ao longo das últimas quatro décadas, deve avançar de forma decisiva para estes cortes. Quem, pelo contrário, quer preservá-lo, deve opor-se sem reservas ao compromisso já assumido detalhadamente pelo ainda primeiro-ministro junto da troika.
Estes cortes são politicamente perigosos porque são economicamente irracionais – como aliás demonstra, ainda que de forma tímida, o próprio BdP. No boletim de verão são revistos em baixa os valores do PIB para 2014. Um crescimento previsto da economia de 1,1%, passou para 0,3%, muito próximo da recessão. Tudo porque foram consideradas as medidas de austeridade pré-anunciadas. A timidez está, contudo, na forma como foi calculado o impacto recessivo dos cortes da dupla Passos/Gaspar.
A questão é saber como se prevê os efeitos dos cortes no comportamento da economia. Como é sabido, todas as instituições têm revisto o multiplicador que usam para o efeito. O FMI já o fez – reconhecendo os erros sucessivos nas suas estimativas – e um grupo de economistas do BdP fez agora o mesmo. De acordo com este estudo, em momentos como o que vivemos, o multiplicador é de 2 – ou seja, superior ao que o próprio Banco (ainda) usa nas suas projeções.
Como chamou a atenção, com notável clareza, o economista Luís Aguiar-Conraria, no blogue “A destreza das dúvidas”, 4,7 milhões representam cerca de 2,85% do PIB e, se usarmos o multiplicador atualizado, os cortes previstos provocariam uma queda no PIB de 9,4 mil milhões – ou seja, superior ao previsto no boletim de verão. Por si só, esta queda aumentaria a dívida de 125% para 132% e implicaria uma diminuição de receitas de 3,3 mil milhões. Contas feitas, 4,7 mil milhões de cortes corresponderiam a uma redução de défice de, pasme-se, 0.6 p.p. Pelo caminho, a recessão agravar-se-ia e começa a ser difícil antecipar o comportamento do mercado de trabalho. Aguiar-Conraria pergunta, com razão: “não há ninguém que lhes esfregue com as folhas de Excel na cara?”
Espero que isto tenha sido feito ad infinitum durante as negociações, porque uma conversa que termine com a manutenção dos cortes prometidos por Passos/Gaspar no fim da 7ª avaliação não terá nada de salvífico. É apenas mais um ato de uma tragédia nacional.

publicado no Expresso de 6 de Julho

Obviamente, demita-se


O propósito do Presidente da República de promover um consenso entre os partidos que tiveram responsabilidades governativas era há um ano desejável, exigente, mas viável. Naturalmente que um compromisso não é um valor em si, depende do seu conteúdo. E no passado tinha sido importante promover um compromisso que assentasse numa inversão da estratégia de ajustamento que tem sido seguida e que se tem revelado uma verdadeira catástrofe. Mas esse comboio já passou e, hoje, o consenso que o Presidente pede deixou de ser possível.
Desde logo porque assenta numa escalada de humilhação ao primeiro-ministro. Passos Coelho conseguiu algo inédito: em dez dias foi desautorizado e demitido três vezes. Pelo Ministro das Finanças, que afirmou que não era capaz de liderar; pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que sublinhou que era politicamente incapaz; e, finalmente, pelo Presidente da República, que não lhe reconheceu capacidade para dirigir o governo recauchutado que lhe foi apresentado. Como é que alguém que nem pelos seus pares é visto como politicamente capaz pode liderar um consenso alargado?
O exercício assenta também num pedido paradoxal. O mesmo Presidente que, depois de ter sido humilhado pela dupla Passos/Portas, lhes retirou a confiança, vem depois pedir ao Partido Socialista que confie nos líderes da coligação e negoceie com eles. Não é possível negociar com quem está tão desacreditado e fragilizado.
No fundo, as sucessivas mensagens dos últimos dez dias convergem num sentido: obviamente, demita-se. Depois do que foi dito por Gaspar, Portas e Cavaco, alguém com o mínimo respeito por si próprio teria já dado esse passo.
Mas a situação insólita em que nos encontramos não resulta, no essencial, de um problema de conduta do primeiro-ministro, mas sim de uma exigência que implica que, por arte mágica, se apague tudo o que se passou politicamente nos dois últimos anos.
Chegámos aqui porque tivemos um primeiro-ministro que foi incapaz de promover consensos e que foi descartando, um a um, todos os parceiros (primeiro o PS, que foi afastado logo na 1ª avaliação ao memorando; depois a UGT e logo de seguida os restantes parceiros sociais; e, finalmente, até o parceiro de coligação, o CDS) e, mais relevante, porque foi seguida uma estratégia orçamental assente numa austeridade revolucionária que, manifestamente, colapsou.
Há alguma razão para crermos que “agora é que é”? Que, com um Governo sem liderança, em desagregação interna e que não se coordena, com dois líderes que humilharam Cavaco Silva e que foram objectivamente desautorizados pelo Presidente, vai ser possível alcançar compromissos e garantir a estabilidade política inexistente?
Portugal precisa, de facto, de compromissos e de um acordo amplo. Mas um acordo para renegociar (o memorando) e para mudar (começando por convencer a troika do absurdo económico que é manter os cortes de 4 mil milhões, deixados por Gaspar). Um consenso com os mesmos protagonistas e em torno da trajetória dos últimos dois anos é suicídio assistido.

 publicado no Expresso de 29 de Junho

Anatomia de um cadáver


É tentador explicar os últimos dias da política portuguesa com um conjunto de comportamentos irracionais. Mas é um erro. Como é sabido, mesmo a loucura obedece a uma lógica interna. E, se estamos a ser varridos por mais uma vaga de loucura política, não é ainda assim difícil encontrar causas explicativas.
A justificação mais consistente encontra-se, paradoxalmente, na carta de demissão de Vítor Gaspar. Com particular sinceridade, o ex-ministro das Finanças anunciava a inevitabilidade do caos político que se seguiria. No fundo, era uma questão de tempo até chegarmos aqui. O que talvez seja surpreendente é o estrondo com que tudo aconteceu.
Para Gaspar, o falhanço deste Governo é resultado da estratégia orçamental e da ausência de liderança política. Assenta, por um lado, no reconhecimento do incumprimento, em 2012 e 2013, “dos limites do programa para o défice e para a dívida”, que “minou a (sua) credibilidade” e, por outro, numa falta de liderança que assegurasse “as condições internas de concretização do ajustamento”. Não por acaso, há uma palavra chave no texto, escrita aliás em itálico, atempadamente. O primeiro-ministro não foi capaz de garantir, em tempo, as condições políticas para fechar a 7ª avaliação e a ausência dessas condições inviabilizava a elaboração do orçamento de Estado para 2014 e o já acordado corte de 4 mil milhões, conclui Gaspar.
Neste duplo falhanço – político e orçamental – encontram-se as causas profundas da semana que vivemos e os constrangimentos para os próximos tempos.
Podemos naturalmente centrar-nos no ruído, na infantilidade política reinante ou até deixarmo-nos ficar perplexos com a indigência discursiva e a total ausência de sentido de Estado que caracteriza o ainda primeiro-ministro, mas a questão essencial é outra. Alguém no seu perfeito juízo pensa que um Governo que até aqui não foi capaz de consensualizar internamente os cortes com que se comprometeu ou, alternativamente, renegociar com a troika vai, depois desta semana, conseguir fazê-lo atempadamente?
A consequência imediata desta semana é que onde havia um Governo dividido, com pouca margem de manobra e incapaz de cumprir o próprio programa, passou a existir um cadáver político, que não serve nem sequer a si próprio. Talvez a metáfora mais exata para o Governo seja a das galinhas que, mesmo depois de verem a sua cabeça cortada, continuam a correr, sem sentido e sem direção.
Esta sucessão de eventos mostra bem como temos de ser devolvidos à razoabilidade e precisamos de tornar viável esta estratégia de ajustamento ou, preferencialmente, uma outra. Com o que resta do cadáver político que nos governa, deixou de ser possível cumprir o acordado com a troika na 7ª avaliação, mas também conceber uma estratégia alternativa. Se nenhum destes caminhos pode ser trilhado, qual a razão para prolongar o estertor e manter vivo artificialmente algo que já está, de facto, politicamente morto?
(disclaimer: este artigo foi escrito na sexta-feira às 11.30 da manhã. Pode bem ter sido ultrapassado por alterações nos factos)

publicado no Expresso de 22 de Junho

Carta aos homens bons do meu país


Nasci duas semanas depois do 25 de Abril, pelo que felizmente não conheci o país de pobreza envergonhada e claustrofobia cívica que então éramos. Mas tenho memória suficiente para saber que a escola secundária que frequentei era bem pior do que aquela onde hoje voto, que a faculdade onde dou aulas tem hoje muito mais recursos do que tinha quando me licenciei e que o hospital onde levo os meus filhos nada tem a ver com os que existiam. Podia continuar a enumerar exemplos de como Portugal, não sendo o país com que todos sonhámos, é hoje bem melhor do que há 30 anos. Foram cometidos erros, mas o alcance das transformações sociais dá-nos motivos de orgulho como comunidade. Devemos à democracia e à Europa um país com menos desigualdades, mais desenvolvido e mais plural. Não há razão para nos sentirmos culpados por isso e muito menos precisamos de uma expiação moral regeneradora.
Peço desculpa pelo desabafo, mas não me conformo com a inércia das mulheres e dos homens bons do meu país perante a rápida destruição do que construímos. Podemos aceitar que a História não é uma caminhada imparável rumo ao progresso; sabemos também que os constrangimentos que enfrentamos colocam-nos desafios difíceis de gerir; o que não devemos é tolerar com passividade que, através de uma combinação explosiva de incompetência e voracidade ideológica, se vá lançando as bases de um “Estado de exceção”.
A ligeireza com que o Governo tem afrontado a Constituição é aviltante. Para além das normas grosseiramente não constitucionais que têm feito parte dos orçamentos e que se anunciam novamente para o próximo ano, ainda esta semana tivemos dois exemplos de uma inclinação imparável para agir fora da lei. O episódio do não pagamento do subsídio de férias ou a forma como, perante uma decisão sobre serviços mínimos, o desejo imediato foi rever a lei demonstram como o revanchismo não conhece limites.
A incompetência é uma marca igualmente distintiva. O Governo não só tem falhado todas as metas, de acordo com critérios que estabeleceu para si próprio, como tem enveredado por um caminho onde arrogância se mistura com ausência de bom senso, perdendo pelo caminho a racionalidade na ação. Foi com incredulidade que vimos a queda do investimento ser justificada pela chuva.
Há em tudo isto um efeito de demonstração. Tal como na Grécia ou em Chipre, fica-se com a sensação que os emissários da troika ou os seus zelosos representantes no Governo estão a transformar cidadãos em cobaias de uma experiência social e política, tentando esticar a corda o máximo possível. Não podemos permitir que façam de nós o que lhes apetece, baseados em diatribes ideológicas sem qualquer sustentação na realidade.
O problema está bem para além da esquerda e da direita e o que está em causa não é secundarizar diferenças ideológicas. É tão só resolver um problema anterior: devolver Portugal à razoabilidade. Para isso precisamos urgentemente de outro Governo e de outra coligação social. Tenho a certeza que há suficientes homens e mulheres bons no meu país para impedirem a continuação do desastre em curso. Ficamos a aguardar a vossa ação.

 publicado no Expresso de 15 de Junho