segunda-feira, setembro 16, 2013

Carta aos homens bons do meu país


Nasci duas semanas depois do 25 de Abril, pelo que felizmente não conheci o país de pobreza envergonhada e claustrofobia cívica que então éramos. Mas tenho memória suficiente para saber que a escola secundária que frequentei era bem pior do que aquela onde hoje voto, que a faculdade onde dou aulas tem hoje muito mais recursos do que tinha quando me licenciei e que o hospital onde levo os meus filhos nada tem a ver com os que existiam. Podia continuar a enumerar exemplos de como Portugal, não sendo o país com que todos sonhámos, é hoje bem melhor do que há 30 anos. Foram cometidos erros, mas o alcance das transformações sociais dá-nos motivos de orgulho como comunidade. Devemos à democracia e à Europa um país com menos desigualdades, mais desenvolvido e mais plural. Não há razão para nos sentirmos culpados por isso e muito menos precisamos de uma expiação moral regeneradora.
Peço desculpa pelo desabafo, mas não me conformo com a inércia das mulheres e dos homens bons do meu país perante a rápida destruição do que construímos. Podemos aceitar que a História não é uma caminhada imparável rumo ao progresso; sabemos também que os constrangimentos que enfrentamos colocam-nos desafios difíceis de gerir; o que não devemos é tolerar com passividade que, através de uma combinação explosiva de incompetência e voracidade ideológica, se vá lançando as bases de um “Estado de exceção”.
A ligeireza com que o Governo tem afrontado a Constituição é aviltante. Para além das normas grosseiramente não constitucionais que têm feito parte dos orçamentos e que se anunciam novamente para o próximo ano, ainda esta semana tivemos dois exemplos de uma inclinação imparável para agir fora da lei. O episódio do não pagamento do subsídio de férias ou a forma como, perante uma decisão sobre serviços mínimos, o desejo imediato foi rever a lei demonstram como o revanchismo não conhece limites.
A incompetência é uma marca igualmente distintiva. O Governo não só tem falhado todas as metas, de acordo com critérios que estabeleceu para si próprio, como tem enveredado por um caminho onde arrogância se mistura com ausência de bom senso, perdendo pelo caminho a racionalidade na ação. Foi com incredulidade que vimos a queda do investimento ser justificada pela chuva.
Há em tudo isto um efeito de demonstração. Tal como na Grécia ou em Chipre, fica-se com a sensação que os emissários da troika ou os seus zelosos representantes no Governo estão a transformar cidadãos em cobaias de uma experiência social e política, tentando esticar a corda o máximo possível. Não podemos permitir que façam de nós o que lhes apetece, baseados em diatribes ideológicas sem qualquer sustentação na realidade.
O problema está bem para além da esquerda e da direita e o que está em causa não é secundarizar diferenças ideológicas. É tão só resolver um problema anterior: devolver Portugal à razoabilidade. Para isso precisamos urgentemente de outro Governo e de outra coligação social. Tenho a certeza que há suficientes homens e mulheres bons no meu país para impedirem a continuação do desastre em curso. Ficamos a aguardar a vossa ação.

 publicado no Expresso de 15 de Junho