Carta aos homens bons do meu país
Nasci duas semanas depois do
25 de Abril, pelo que felizmente não conheci o país de pobreza envergonhada e
claustrofobia cívica que então éramos. Mas tenho memória suficiente para saber
que a escola secundária que frequentei era bem pior do que aquela onde hoje
voto, que a faculdade onde dou aulas tem hoje muito mais recursos do que tinha
quando me licenciei e que o hospital onde levo os meus filhos nada tem a ver
com os que existiam. Podia continuar a enumerar exemplos de como Portugal, não
sendo o país com que todos sonhámos, é hoje bem melhor do que há 30 anos. Foram
cometidos erros, mas o alcance das transformações sociais dá-nos motivos de
orgulho como comunidade. Devemos à democracia e à Europa um país com menos
desigualdades, mais desenvolvido e mais plural. Não há razão para nos sentirmos
culpados por isso e muito menos precisamos de uma expiação moral regeneradora.
Peço desculpa pelo desabafo,
mas não me conformo com a inércia das mulheres e dos homens bons do meu país
perante a rápida destruição do que construímos. Podemos aceitar que a História
não é uma caminhada imparável rumo ao progresso; sabemos também que os
constrangimentos que enfrentamos colocam-nos desafios difíceis de gerir; o que
não devemos é tolerar com passividade que, através de uma combinação explosiva
de incompetência e voracidade ideológica, se vá lançando as bases de um “Estado
de exceção”.
A ligeireza com que o
Governo tem afrontado a Constituição é aviltante. Para além das normas
grosseiramente não constitucionais que têm feito parte dos orçamentos e que se
anunciam novamente para o próximo ano, ainda esta semana tivemos dois exemplos
de uma inclinação imparável para agir fora da lei. O episódio do não pagamento
do subsídio de férias ou a forma como, perante uma decisão sobre serviços
mínimos, o desejo imediato foi rever a lei demonstram como o revanchismo não
conhece limites.
A incompetência é uma marca
igualmente distintiva. O Governo não só tem falhado todas as metas, de acordo
com critérios que estabeleceu para si próprio, como tem enveredado por um
caminho onde arrogância se mistura com ausência de bom senso, perdendo pelo
caminho a racionalidade na ação. Foi com incredulidade que vimos a queda do
investimento ser justificada pela chuva.
Há em tudo isto um efeito de
demonstração. Tal como na Grécia ou em Chipre, fica-se com a sensação que os
emissários da troika ou os seus
zelosos representantes no Governo estão a transformar cidadãos em cobaias de
uma experiência social e política, tentando esticar a corda o máximo possível.
Não podemos permitir que façam de nós o que lhes
apetece, baseados em diatribes ideológicas sem qualquer sustentação na
realidade.
O problema está bem
para além da esquerda e da direita e o que está em causa não é secundarizar
diferenças ideológicas. É tão só resolver um problema anterior: devolver
Portugal à razoabilidade. Para isso precisamos urgentemente de outro Governo e
de outra coligação social. Tenho a certeza que há suficientes homens e mulheres
bons no meu país para impedirem a continuação do desastre em curso. Ficamos a
aguardar a vossa ação.
publicado no Expresso de 15 de Junho
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