Uma grande ilusão
Nunca saberemos a verdade
por inteiro. Há dois anos, Passos Coelho achou que era chegada a sua hora,
provocou uma crise política extemporânea e alicerçou a campanha eleitoral no
que pode ser classificado, para sermos benévolos, como uma colossal mentira. A
ligeireza com que resolveria todos os problemas, que, convém nunca esquecer,
não implicariam “mais austeridade” (sic), continua a ecoar. Hoje a dúvida
persiste: tê-lo-á feito por total impreparação ou por mero tacticismo
eleitoral? A resposta talvez esteja numa combinação das duas coisas.
Independentemente das
justificações que possamos encontrar, os resultados são claros. No essencial,
Passos Coelho, por aquilo que disse e pelo que não disse, diminuiu a
legitimidade da sua ação futura e limitou muito a capacidade política de que
viria a necessitar como primeiro-ministro. Uma vez eleito, o espectro do que
disse o candidato Passos Coelho não tem deixado de acompanhar a ação do líder
do Governo.
Ainda assim, a mentira da
campanha é fundamentalmente prejudicial ao Executivo e degrada, ainda mais, a
imagem dos políticos e da política. Nessa perspectiva, a ilusão em que hoje
opera o Governo é muito mais perniciosa.
Não é preciso recuar muito
no tempo para termos exemplos claros do ilusionismo dominante.
A crer no Expresso da semana
passada, a coligação prepara-se para assinalar os dois anos de governação
focando o seu discurso nas reformas e no “crescimento do país” (sic). O
objectivo é, convenhamos, coerente. Ainda no fim-de-semana, Passos Coelho
afirmava, num momento em que todas as previsões apontam para um aumento da
dívida em 2014 e em que os sinais negativos sobre a execução orçamental de 2013
se avolumam, que “não vai aumentar o défice ou a dívida”. Talvez seja difícil
encontrar exemplos mais acabados que provem, de forma tão clara, que neste
momento o Governo já opera numa realidade paralela.
Ainda assim, podemos tomar
estas declarações como fruto de uma gestão casuística do discurso. Bem mais
preocupante é aquilo que se anuncia em termos de estratégia orçamental.
Depois de ter sido
apresentado um orçamento retificativo que, em lugar de retificar, ratifica as
soluções que já falharam, tudo o que se anuncia para 2014 só pode ser visto
como um capítulo de um livro de ficção de péssima qualidade. Um cenário
macroeconómico inverosímil, um défice no fim de 2013 que tornará, à partida, o
exercício de 2014 inexequível e compromissos quantificados que constam da carta
à troika incompatíveis com as declarações do primeiro-ministro no Parlamento (por
exemplo, o montante a alcançar com os cortes na CGA).
Dois anos depois há uma
verdade trágica: um Governo que assentou a sua legitimidade num colossal
embuste diminui as suas próprias condições para exercer o poder. Já um Governo
que vive numa ilusão sem qualquer adesão à realidade nem sequer serve a si
próprio. É um Governo perigoso, que está a ameaçar o futuro do país,
comprometendo-o por uma geração.
publicado no Expresso de 8 de Junho
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